“A
filosofia, em sua função histórica, é essa extração, essa traição, eu quase
diria, do saber do escravo, para obter sua transmutação em saber do senhor.”
Jacques
Lacan
Cena
1
Osvaldo entra na padaria.
Atrás do balcão, Maria, uma funcionária, conversa com outra que varre o chão:
- Não pode, vê se pode! Ela
disse para mim que minha obrigação é sorrir enquanto a atendo.
- Humm...
Não sou obrigada a sorrir!
Farei apenas o meu trabalho!
- É...
Neste tempo Osvaldo está ali
apenas escutando. Não pede nada, curioso e intrigado pela história.
De repente ela olha para ele,
o que produz um breve silêncio entre olhares. Dois ou três longos segundos de
silêncio!
Maria ri uma risada larga e
diz:
- Você ficou em silêncio
escutando sem pedir nada?!
Osvaldo respondeu quase como
um soluço:
- E você sorriu!
- É! (continua sorrindo).
Osvaldo pede os pães,
agradece e vai embora.
Cena
2:
Em
um dos momentos altos da narrativa, Gregor Samsa, personagem de Kafka, na Metamorfose, transformado em inseto, se
fecha no quarto enquanto seus pais chamam seu chefe para retirá-lo de lá. Sua
irmã Grete está entre a sala e o quarto de Gregor. Assim Kafka
descreve a cena:
- Entenderam uma única
palavra? - perguntou o gerente aos pais.
– Será que ele não nos está fazendo de bobos?
- Pelo amor de Deus! –
exclamou a mãe já em lágrimas. – Talvez ele esteja seriamente doente e nós o atormentamos.
Grete! Grete! – gritou então.
- Mamãe? – bradou a irmã do
outro lado.
Elas se comunicavam através
do quarto de Gregor.
- Você precisa ir
imediatamente ao médico. Gregor está doente. Vá correndo ao médico. Você ouviu
Gregor falar, agora?
- Era uma voz de animal –
disse o gerente, em voz sensivelmente mais baixa, comparada com os gritos da
mãe.
Cena
3:
O inferno, 1510-1520
pintor português desconhecido.
Todos
queriam ir para o céu no Auto da Barca do
Inferno, mas seus pecados o empurravam para o inferno, para o deleite do
diabo. Ao tentar entrar na barca do
anjo, o Corregedor diz:
Ó
arrais dos gloriosos,
Passai-nos
neste batel!
O Anjo:
Ó
pragas pera papel,
Pera
as almas odiosos!
Como
vindes preciosos,
Sendo
filhos da ciência!
Corregedor:
Oh
Habeatis clemência
E passai-nos
como vossos!
Joane
Hou
homens dos breviários,
Rapinastis
coelhorum
Et pernis
perdiguitorum
E mijais
nos campanairos!
Joane (ou o Parvo) é um dos poucos não condenados pelo diabo. Apesar de seus
pecados, chega desprovido de tudo, sem malícia. É uma alma pura, cujos valores
são legítimos e sinceros. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Então,
por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.
É Joane quem ajuda o Anjo a denunciar o Corregedor. Chamado de
"praga do papel” pelo Anjo, Joane complementa referindo-se ao Corregedor
como o homem dos “breviários”, dos manuais, ironia com quem segue livros e não
a consciência, e critica também o uso mecânico das normas burocráticas.
Cena 4:
Com
muito custo o comando de greve entra na escola. Intervalo dos professores. Já
dura duas semanas a greve. Uma altiva professora pede a palavra. Discursa sobre
os motivos da greve.
Os
minutos do intervalo correm... Os pensamentos dos professores que ouvem também.
A professora Helena se incomoda com o comando de greve, mas não fala nada.
Pensa consigo mesmo que eles não sabem sobre sua vida, não sabem o que ela
sofre. Mas lhe vem à cabeça que ela também não sabe nada sobre aquela mulher,
nem seu nome recorda... Olha o relógio e pensa: “poucos minutos de intervalo e ainda
tem que aguentar este pessoal”.
Nos
momentos finais de sua fala a altiva professora diz:
- Colegas professores, por
isto tudo precisamos aderir à greve e a paralisação. Eles não podem nos calar! O
que acham?
Um vazio
toma a sala. De alguma forma o co-mando
pedia que todos se posicionassem. Naquele silêncio havia o mesmo peso de mando das palavras
da altiva professora. De alguma forma aqueles professores ali sentados
conseguiram, em meio à crise educacional, a ilusão de que seu mal-estar subjetivo
era menos pior se mantendo no trabalho.
Em
meio ao silêncio, o “não podemos nos calar” ressoava na cabeça de Helena, e ela
diz o que o discurso da altiva professora queria escutar:
Se
todos forem eu também vou, mas só no dia da paralisação!
Helena
ocupa o lugar de Joane (ou Parvo), personagem do Auto da Barca do Inferno, e deseja garantir seu lugar no céu pela inocência.
“Se todos forem não serei culpada sozinha, ou não precisarei assumir minha responsabilidade”,
pensa Helena. Um traço do mundo privado, da Casa na cultura brasileira, faz os
verdadeiros pecadores serem aqueles que desejam ocupar os espaços públicos.
Eles estão ali na frente de Joane e de Helena, e estes merecerão a barca do
inferno, certamente.
Magritte,
O terapeuta, 1936.
Palavras
podem produzir um discurso, mas nem todos os discursos carregam palavras.
Palavras tem a força de produzirem laços. Discursos muitas vezes produzem
relações entre senhores e escravos.
Os
tempos indicam que até o humor nos roubam. Não basta mais o resultado do trabalho,
é preciso uma forma de ser no trabalho. Maria não quer dar para qualquer um
seus sorrisos. Deseja que seu humor lhe seja singular.
Freud já dizia que “o
humor não é resignado, é rebelde, ele significa não apenas o triunfo do Eu, mas
também do princípio do prazer, que nele consegue afirmar-se, contra a adversidade
das circunstâncias reais”. Sorrir é resistir às circunstâncias da vida, seu
mal-estar.
Osvaldo
escutou Maria, e ganhou um largo sorriso. Quem escuta Maria? Querem apenas que
ela sorria, um sorriso que não é seu. O humor é uma marca de Gil Vicente. Homem
da corte, que produziu mais de 40 peças encomendadas, e fez do Auto da Barca do Inferno uma sátira
social na qual os personagens um a um eram desmascarados pela hipocrisia pela
qual levavam suas vidas e pelos seus contraditórios ideais religiosos.
Gil
Vicente consciente ou inconscientemente criticava os discursos que
assujeitavam. O corregedor era um burocrata do papel e da ciência. Seu discurso
era o que Lacan chamava de discurso do mestre, na qual há um senhor e um
escravo. Portanto não era apenas o produto ou a atividade do trabalho que era expropriada, no
que Marx chamava de mais-valia, mas o próprio discurso, uma forma de saber que
marcou a tradição ocidental, e se faz como um mais-gozar do senhor.
E é
na Metamorfose que vemos os pais de
Gregor Samsa chamarem o médico e o chefe. Ambos, médico e chefe, possuem
o direito de gozar do discurso, de nomear e classificar o outro. Talvez se a Metamorfose fosse produzida hoje, Gregor
seria diagnosticado com Síndrome de Burnout
ou depressão. Nossa cultura ocidental acostumou-se a um lugar no sofrimento, um lugar de escravo.
Quando
Gregor vira um imenso inseto, a primeira coisa que se dá conta é a perda da voz
e da palavra. Se (re)descobre no seu corpo de inseto como um ser que não tem direito a fala. Seu chefe aproxima-se do quarto e diz: “Entenderam o que ele fala?” e afirma quando o ouve: “Era uma voz de
animal!”.
Assim
como a mais-valia, o mais-gozar do discurso se renova. Adquire tons de conhecer
profundo. Como diz Lacan, a palavra episteme
significa “colocar-se em boa posição”. “Trata-se de encontrar a posição que
permita que o saber se torne um saber de senhor”.
E
assim no mundo do trabalho, da ciência, da burocracia, das universidades, do
capitalismo, da esquerda, da direita há um traço do discurso que tenta apagar
qualquer forma de singularidade. Porque a singularidade carrega um traço
político decisivo, ela nos remete ao espelho de nossa própria singularidade.
Trata-se da política no sentido mais radical.
Marcelo Tomassini, 30 de março de 2017
Referências:
Lacan, O avesso da
psicanálise – Zahar
Kafka, A Metamorfose – CIA das
Letras
Gil Vicente, Auto da Barca
do Inferno, Atelie Editorial
S. Freud, O humor – Cia das
Letras.