sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O tempo de ver: a lógica inconsciente do racismo brasileiro



Alguns meses atrás chegou uma aluna transferida para a escola municipal que trabalho. Ao perguntar por que mudou de escola disse-me que era por conta que os colegas “zuavam” o seu cabelo. Ela é uma adolescente negra com os cabelos trançados, muita bonita.  

É verdade que nesta fase da adolescência a busca de uma identidade responde as próprias demandas da sexualidade. As transformações no corpo e no desejo redefinem lugares e olhares. Apontar a diferença no outro é produzir nossa própria forma de reconhecimento, nossos espelhos. O “bullyng” se transformou no diagnóstico comportamental da moda.

No entanto, o caso relatado não se trata de “bullyng”, mas de racismo. Uma menina inteligente e bonita sofre com o racismo, porque a diferença que está posta é histórica, e não somente da identidade numa fase de descobertas. Ela se tornou histórica porque foi marcada pelos aspectos concretos da nossa história: a economia, a política e as disputas e relações de poder de grupos e classes sociais. O racismo brasileiro é estrutural, porque é desta estrutura de origem colonial que se engendrou o Estado brasileiro. A máxima de que nunca houve um monumento da cultura, que não fosse também um monumento da barbárie, é tão cinicamente explícita em nossa realidade que cega. 
  
Estes aspectos concretos transformaram-se em força ideológica e psicológica. Formaram-se e naturalizaram-se como traços da cultura. Tornaram-se as marcas também inconscientes que atravessam socialmente os indivíduos. Que os fazem agir de modo natural, sem pensar. E quando “pensam”: “mas eu tenho amigos negros!”, dizem.

É conhecida aquela pesquisa da Folha de São Paulo na década de 90 na qual cerca de 90% das pessoas dizem que não são racistas, mas que conhecem pessoas racistas. Um racismo dissimulado (“racista sem racistas”) parece ser nossa marca cultural. “No Brasil, o racismo é o crime perfeito”, diz o antropólogo Kabenguele Munanga que denúncia o mito da democracia racial.

Tempos atrás trabalhava numa escola particular na qual se contava a quantidade de alunos negros com apenas uma mão. Uma das poucas alunas negras da escola ganhava uma bolsa, para ajudar os professores no ensino primário.

Esta aluna comentava espantada como crianças de três, quatro, cinco anos já expressavam atitudes primitivas de intolerância. As coisas de menininha, as escolhas padronizadas de brinquedos e reconhecimento. É a cultura talhando, dando forma. O discurso do Outro marcando cada indivíduo.

É comum dizermos que as crianças são resultado dos laços produzidos pelos pais, que, aliás, não devemos esquecer, também foram crianças. Os laços que são feitos entre os pais, produzem o discurso que dará um lugar na linguagem para a criança. Neste movimento se realiza a potência da tradição. O racismo tem esta força poderosa, porque o processo se inicia pela socialização primária, já nos primeiros anos e suas identificações.  

Kronos e Kairós

Em 1915, no texto “O Inconsciente”, Freud estabelece o inconsciente como atemporal. Já o tempo para Freud estaria vinculado ao sistema consciente. Na segunda tópica, Freud volta a indicar ao Id à inalterabilidade do reprimido. As marcas do Id são atemporais.

Lacan pensa que o que emerge do inconsciente não vem antes, mas depois. É o depois que dá consistência ao antes, e não o contrário. É neste sentido que a psicanálise pode dar novos significados aos acontecimentos. É o presente e não o passado que abre possibilidades ao ato psicanalítico.   

No “mundo grego”, dois deuses se destacavam pela relação com o tempo: Kronos e Kairós.  Kronos, com medo de ser destronado pela maldição de um oráculo, devorava seus filhos para que nenhum deles ocupasse seu lugar. É célebre na tradição ocidental a imagem de Saturno/Kronos devorando seu filho. 


Francisco Goya, 1819-1823

Kronos é o Deus do tempo cronológico e linear. Sua representação simbólica é de um monstro devorador. O tempo é implacável! O tempo não para! E na modernidade uma nova modalidade do tempo se instaura: tempo é dinheiro! Por mais ilusões que nos vendam, não há remédio para aplacar o envelhecimento e a morte.

Freud demonstrou como o inconsciente se abre em certos momentos – ato falho, sintoma, sonho, chiste. Kairós está relacionado ao tempo certo. Possui natureza qualitativa e não linear e quantitativa como Kronos. Marca o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. É a fissura do tempo da repetição como linguagem.

Lacan ao tratar dos tempos lógicos, vai estabelecer três instâncias temporais: instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir. Estes tempos atuam denunciando a conclusão a que o sujeito pode chegar pelo que ele verdadeiramente não vê, o que cria um efeito de certeza antecipada.

Numa análise o instante de ver é o momento em que o sujeito vê a repetição através da pontuação do “analista”: encontro com o real. É o real que acorrenta o sujeito, não o passado. O tempo para compreender se desenvolve durante as elaborações do sujeito acerca da repetição, e que pode levá-lo ao momento de concluir, pondo fim à repetição. É o tempo de se perguntar e de decidir qual é o desejo, quais caminhos seguir.

Pra frente Brasil!

No Brasil há determinados fenômenos que parecem atemporais, como no inconsciente freudiano. Repetem-se.  Quinhentos anos e nossa história não ultrapassa plenamente seu próprio instante de ver. Escravidão, monarquias, ditaduras, coronelismo, o velho e o novo amalgamados.

 Sobre o conceito de história vem à luz “a ideia de progresso da humanidade que na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha”, diz Walter Benjamin. 

“Pra frente Brasil!”, “50 anos em 5!”, “Brasil: ame-o ou deixe-o!”, “É preciso fazer o bolo crescer para depois dividir!”, “Belo monte vai sair!” “Não reclame, trabalhe!” são frases de nossa marcha, nossa maldição rumo a ordem e ao progresso. Nossa compulsão à repetição. O tempo brasileiro avança de modo linear e homogêneo, amalgamando o velho e o novo. Trata-se do Deus Kronos devorando seus filhos!

Benjamin criticava a adaptação da socialdemocracia europeia a este tempo vazio e linear do progresso: seus traços tecnocráticos iriam aflorar no próprio fascismo na Europa. Nos últimos tempos o progresso impulsionado pela “esquerda brasileira” também parece pagar um alto preço à história. Qualquer possibilidade de repensar este tempo coloca em questão o historicismo, o positivismo petrificado na subjetividade brasileira. Vivemos tempos em nome do progresso vazio e homogêneo, que pratica a política do ultimato.

O 20 de novembro e o tempo de compreender 
   
E é neste contexto que estamos próximos do dia 20 de novembro, dia da consciência negra. Este dia marca a morte de Zumbi do Palmares, líder do mais importante quilombo da história do Brasil, o Quilombo dos Palmares. O movimento negro trata o dia 13 de maio como o dia da denúncia, data da abolição da escravidão, a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, filha de D. Pedro II.

No ano seguinte à escravidão, cai o regime monárquico. Um movimento das elites cafeeiras e militares pelo alto instaura a República no Brasil. Muda-se o regime, mas a transição democrática não é realizada. Milhares de trabalhadores libertos da escravidão são jogados à sua própria “sorte”, ao “acaso” do inconsciente brasileiro.  

“Por irônico que pareça, foram esses círculos dominantes das camadas conservadoras que deram impulso e orientações finais às agitações antiescravistas, imprimindo-lhes uma direção política totalmente avessa aos intuitos humanitários dos abolicionistas e frontalmente contrária ao ardor redencionista dos escravos ou dos libertos”, diz Florestan Fernandes em “A integração do negro na sociedade de classes”.

 O processo de colonização e escravidão no Brasil produziu um traço cultural que marca nossa subjetividade. As repetições de fenômenos sociais e culturais de violência, racismo, machismo e pobreza de amplas parcelas da população negra e branca, explícitas também em qualquer estudo estatístico são a expressão do tempo da repetição: internalizado, inconsciente. É nossa forma subjetiva atemporal de gozar.


Zumbi dos Palmares.

O movimento negro luta para que a sociedade brasileira faça a travessia do instante de ver para o tempo de compreender. A denúncia do dia 13 de maio e a luta para inscrição na memória do dia 20 de novembro significam este ato de mudança de posição, de lugar, de olhar. Foi apenas em 2003 que o dia 20 de novembro tornou-se o dia nacional da consciência negra. Pouco mais de uma década, 2,5% destes últimos 516 anos, de um ato simbólico que movimenta enormes resistências conscientes e inconscientes.  

O dia da consciência negra ainda está longe de ser rememorado em todas as cidades. Há cidades em que movimentos promovem uma série de resistências a ele. Recentemente uma ação na justiça derrubou este feriado na cidade de Porto Alegre alegando prejuízos ao comércio e que não cabia ao município legislar sobre feriados, somente a União. Nada mais sintomático. Como lembra o advogado que defende o dia da consciência negra em Porto Alegre: ninguém contesta o feriado católico e municipal de Navegantes que é realizado no dia 2 de fevereiro. (http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/11/justica-derruba-feriado-do-dia-da-consciencia-negra-em-porto-alegre.html)

Um dos informantes de Florestan Fernandes, “uma senhora de família ilustre”, retrata a forma como parcelas da sociedade absorveram a transição pós-escravista:

“Eu acho que os negros eram mais felizes naqueles tempos, eram organizados, trabalhavam, tinham casa, comida, cuidados médicos, tinham quem cuidasse. Nos domingos, em vez de ficar descansando e conversando, eles pediam para trabalhar na roça, para ganhar uns dinheirinhos. Muitos com este dinheiro compravam a alforria, mas ficavam na fazenda. Outros compravam coisas na cidade. Agora, veja no que deram, veja em que situação estão. Negro não tem cabeça para se dirigir sozinho. Alguns tem, como Q, que educou os filhos, como J. B. que ficou diretor de grupo, mas a maioria não tem.”  

Os imigrantes europeus foram absorvidos pelo sistema de trabalho brasileiro. Mesmo precarizados em muitas situações, não ficaram “à margem” do sistema como os negros libertos. A falta de políticas de cidadania e o racismo criaram este sentimento de que “negro não tem cabeça”, que hoje se repete nos discursos da meritocracia para uma população que duas, três gerações atrás têm como herança familiares escravizados.

Na produção discursiva da atualidade também há aqueles negros: “Q e J.B” que devem servir de exemplo. “Afinal conquistaram pelo seu mérito, e não nas formas de “racismo reverso” caracterizados pelo dia da consciência negra”, dizem. “Este racismo que se pretende racional, individual, determinado, genotípico e fenotípico, transforma-se em racismo cultural”, diz Frantz Fanon. Os discursos se adaptam ao seu tempo, tornam-se mais sofisticados, se deslocam, para não transbordar os absurdos de nosso historicismo linear, de nossa compulsão à repetição.    

 Apesar de muitos verem a repetição, a sociedade brasileira resiste a chegar ao tempo de compreender. Este tempo de compreender é a possibilidade de tornar pública, escancarar nossa luta, conflito e divisão. O tempo de compreender exige nos responsabilizarmos pela nossa história. Caudilhos, coronéis, soberanos que vivem de modo exterior e interior, como forças demoníacas, devem dar lugar à liberdade do desejo. Isto nos diz respeito, é implicar-se para com nossas escolhas, na dialética da autonomia e na construção de novos laços.

Na psicanálise sabemos que o neurótico se beneficia de modo secundário dos seus sintomas. De certa forma o sintoma traz uma segurança imaginária. Segurança “do sempre foi assim e sempre será”. “Não há o que fazer!” Passar para o tempo do compreender exigirá que tomemos ações, que entremos no tempo de Kairós, da abertura, do devir e, para concluir, lidar com nosso próprio desamparo e liberdade.

Viva o dia da consciência negra! Viva o dia da luta e da liberdade!  

                                                  
                                                   Marcelo Tomassini, 18 de novembro de 2016. 

Referências:

Excelente artigo de Juliana A. Soares “Do tempo perdido ao tempo encontrado: algumas considerações sobre o tempo em psicanálise”, na qual me baseio para pontuar as “questões da psicanálise”. (http://lalingua-org.blogspot.com.br/2010/04/ceu-aberto_6571.html)

Mestre Florestan Fernandes e a Integração do Negro na Sociedade de Classes. Volume I. Mesmo com as atualizações interpretativas feitas pela historiografia e a crítica sociológica, ainda é uma referência para os estudos de Brasil e da inserção do negro na sociedade de classes. Editora Globo. 

Entrevista com o antropólogo Kabenguele Munanga sobre o mito da democracia racial no Brasil.
http://www.revistaforum.com.br/2012/02/09/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito/

Walter Benjamin e sua sensibilidade dialética. “Sobre o Conceito de História”. Editora Brasiliense.

Frantz Fanon: Texto surpreendente pela criticidade e radicalidade dialética. A comunicação “Racismo e cultura”, no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em 1956, marca – e justifica – a opção pela ação política.

http://www.geledes.org.br/racismo-e-cultura-leitura-psicanalitica-e-politica-de-frantz-fanon/#gs.qnyRtJU
  




 


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

As ocupações das escolas e o mal-estar na cultura

                O lugar da criança e do adolescente na cultura



Em junho de 2013 quando trabalhava em uma escola na Brasilândia, acompanhei uma manifestação na região. As grandes manifestações na Paulista começavam a se expandir para os bairros. Quando cheguei nesta manifestação, escuto: “e ai professor, tudo bem?”, “e ai professor, beleza!”. Eram alunos da escola que trabalhava. Adolescentes, crianças de quinta a oitava série, de 11 a 14 anos. Representavam 80%, 90% das pessoas presentes. Lembro que fiquei com uma questão em mente: qual seria o impacto desta experiência para a formação deles?

Naquele momento político de junho as pessoas discutiam que as manifestações eram apenas de jovens da classe média ou universitários, o que se expressava na própria geografia dos atos, a avenida Paulista. O movimento começava a descentralizar para os bairros periféricos, e era extremamente jovem.

No ano passado tivemos as ocupações de escolas em São Paulo na qual pude acompanhar visitando e conversando com os alunos. A prática das ocupações espalhou-se pelo Brasil e hoje vivenciamos o maior movimento estudantil secundarista da história da República.

Mas desde aquele momento de 2013, naquela manifestação da Brasilândia até hoje, o contradiscurso mais forte que é produzido por vários segmentos sociais e políticos é que estes adolescentes estão sendo influenciados por partidos, políticos, professores, etc. As possibilidades dos agentes da manipulação são variadas, mas todos tem algo em comum: são do mundo adulto.

Adultos são os únicos que teriam capacidade de pensar plena e racionalmente. E aqui não estou pensando simplesmente a lei, a legislação do Estado, que de forma justa protege a criança e o adolescente. Estou pensando para além da lei, ou melhor, a lei da cultura, mais forte que qualquer outra lei, porque carrega a tradição de centenas de anos, do além mar.

As ocupações produzem um incomodo não discutido, um tabu, e não é sua pauta em defesa da educação, mas o próprio lugar social da criança e do adolescente na cultura. Do lugar de cidadãos não plenos, para cidadãos plenos de poder e de responsabilização de suas escolhas e desejos.


O mercado publicitário já percebeu o lugar do desejo das crianças e orienta suas propagandas para elas. Mas ainda há uma resistência inconsciente que faz com que o mundo adulto se recuse a dar o lugar de destaque que os adolescentes ocupam hoje. E isto acontece nos campos da direita e da esquerda política no Brasil. Apoiar as ocupações é muito diferente de se permitir aprender com estes jovens. E quem visitou uma ocupação sabe o quanto de libido corre entre eles. A construção de laços de cumplicidade, confiança e amor. Trata-se de Eros, a pulsão de vida.

Há pelo menos duas décadas as escolas lidam com formas de indisciplina que são particulares do nosso tempo. O que se escuta na sala dos professores é que “antigamente havia respeito”. Por trás deste discurso há a força da tradição: o mundo adulto e o mundo da criança.

Nesta dicotomia há, é verdade, muito pouco espaço, tempo, condições de trabalho e desejo para os professores refletirem se não é esta mesma dicotomia a fantasia que produz o sofrimento do professor. Sofrimento econômico, social e simbólico.

Penso se não é a própria experiência que por tantos anos definiu a separação dicotômica do mundo adulto e infantil que não está em crise. Como se nosso capitalismo de desenvolvimento hipertardio finalmente vivenciasse em sua plenitude a própria crise da narrativa benjaminiana: “a arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade – está em extinção”. (O narrador, Walter Benjamin). Os mais velhos, neste sentido, perderam a própria possibilidade da experiência narrativa? E estas crianças e adolescentes ao produzirem suas próprias experiências tornam-se o maior sintoma desta crise.  

De tempos em tempos gosto de reler um livro que traz um conjunto de artigos do Adorno, “Educação e emancipação”. Algumas reflexões sobre a educação pós-segunda guerra mundial e a barbárie do nazismo. Afinal, como o nazismo conseguiu produzir um grau de indiferença tão intenso para com o outro. Eichmann em seu julgamento dizia que só cumpria ordens. Era apenas uma peça no sistema. Isto lhe tira a culpa? Lhe exime da responsabilidade de pensar? E é importante tornar presente estes verbos.

Em um dos textos de “Educação e emancipação”, Tabus acerca do Magistério, Adorno diz que há um conjunto de “representações inconscientes ou pré-conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão como que uma interdição psíquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas”.

Mesmo na Alemanha de Adorno na qual os professores secundários não ganhavam mal, haveria algo que está na ordem da tradição, que permanece na cultura e no plano inconsciente. Esta tradição remonta a ideia que juízes, funcionários especializados (e médicos), por exemplo, carregariam um poder real, enquanto os professores tem um poder sobre sujeitos não totalmente plenos, as crianças. “O poder do professor é execrado porque só parodia o poder verdadeiro que é admirado”, diz Adorno.  


Em 1905, em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud escancarou o mal-estar ao falar sobre a sexualidade infantil.  As descobertas de Freud sobre a sexualidade infantil provocaram grande espanto na sexualidade conservadora do final do século 19 e início dos 20, pois a criança era vista como um símbolo de pureza, um ser assexuado. Como pensar que a criança tem prazer? E explora este prazer no corpo. Como pensar que a criança tem desejo? Questões que ainda hoje deixam pais, escola e sociedade presos a respostas prontas. E a força da tradição e da resistência é tão grande que ao não conseguir desmoralizar a teoria freudiana, há transformam num catálogo da tradição: “a fase oral, a fase anal, a fase genital”.   

Freud dizia que educar faz parte das profissões impossíveis. Depois de onze anos como professor de escolas públicas e particulares concordo com ele. Mas quando Freud diz que educar é uma profissão impossível, ele se refere ao ato de educar e sua impossibilidade de controlar, por qualquer mecanismo pedagógico, o desejo do outro.

 Se educar, de modo simples, é a possibilidade de transmissão de conhecimento, nunca sabemos ao certo (e esta é uma das angústias docentes), o quanto tocamos o outro. E a fantasia que amarra o imaginário docente produz formas de reconhecimento que já se tornaram clichês educacionais.

Arrisco-me a dizer que nenhuma outra profissão é recheada de tantos clichês por causa desta condição não reconhecida de incompletude. “É ensinando que se aprende”, “aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo, e nunca se arrepende”, “eduquem as crianças e não será necessário castigar os adultos” e por ai vai. Toda a tradição ocidental está impregnada destas frases e “saberes” descontextualizados e com um verniz da atualidade: motivacional e de autoajuda. É a incessante tentativa que os educadores fazem para se automotivarem e as próprias dificuldades raramente esclarecidas às crianças.

É na esperança de tornar-se completa, naquilo que o poder real garantiria como premissa, que o mal-estar educacional no Brasil atinge patamares nunca vistos. E os professores tornam-se o agente sádico e ao mesmo tempo masoquista da engrenagem. Quanto mais alimentam o lugar sádico que a tradição escolar os remete, mas são devorados por sua condição de linha de frente do sistema escolar. A desistência, o abstencionismo, a readaptação, as patologias físicas e psíquicas comprovam que o mal-estar docente não é passageiro, mas a própria realidade imanente da profissão.


E é interessante observar que este lugar social e cultural da criança produz efeitos em outras profissões. A pediatria também lida com este poder não pleno, ao tratar com crianças. Não é difícil pesquisar na internet uma série de artigos que evidenciam a crise da profissão.

Segundo o site da associação paulista de medicina “O Pediatra necessita de tempo para dedicar toda essa atenção e, para tanto, deve atuar em condições adequadas, bem como ser remunerado de maneira justa. (...) Muitos de nós, Pediatras, ainda vemos esta especialidade com romantismo, reconhecendo nela a beleza que de fato a cerca. Acompanhamos a criança desde o seu nascimento até a idade adulta”.

É irônico pensar que basta apenas trocar a palavra “pediatra” por “professor” e este texto pode ser reconhecido por qualquer um que trabalhe no espaço escolar. O texto continua:

“Entretanto, com grande preocupação convivemos nos dias atuais com o que podemos chamar de decadência na forma de atuação do Médico, em especial do Pediatra. Várias são as causas desse fato, tais como a baixa remuneração do profissional, a pressão pela quantidade de atendimentos realizados, o não pagamento de consultas de retorno pelos Convênios, a falta de informação dos pais que procuram atendimento por qualquer motivo”. (http://www.apmsjc.com.br/artigos/pediatria_extincao.htm).  

O mal-estar também é resultado do projeto emancipador atribuído à escola. Nada é mais controlador e frágil do que acreditar que a escola pode ocupar este lugar de esclarecimento. E Adorno também era adepto desta tentação iluminista: “O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto”. (Tabus acerca do magistério).

As lutas dos adolescentes trazem, na sua perspectiva geracional, uma crítica bem óbvia, talvez por isto de difícil visualização. Esta crítica produz um mal-estar mais intenso na atualidade. Lutam pelo lugar de reconhecimento na cultura, de sujeitos plenos, contra os discursos que os assujeitam, dos mestres de esquerda ou de direita. Deste gozo o mundo adulto não quer abrir mão.  

Por isto, penso que as lutas são também expressões de embates culturais, geracionais e de reconhecimento narcísico que fazem os adolescentes ocuparem lugares de protagonismo. Este é um conflito que a instituição escolar abriga há anos. A conjuntura criou as condições para que ele se escancare socialmente e que transborde os muros da escola.


                                                              Marcelo Tomassini, 7 de novembro de 2016 

Referências:

“Tabus acerca do magistério no livro Educação e Emancipação” do Theodor W. Adorno – Paz e Terra.

“O Narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” no livro Obras Escolhidas de Walter Benjamin – Editora Brasiliense.

“Análise terminável e interminável” (1937) – S. Freud. (internet)

“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) – S. Freud. (internet)