quinta-feira, 30 de março de 2017

A palavra sem tempo

                 


“A filosofia, em sua função histórica, é essa extração, essa traição, eu quase diria, do saber do escravo, para obter sua transmutação em saber do senhor.”
Jacques Lacan


Cena 1

Osvaldo entra na padaria. Atrás do balcão, Maria, uma funcionária, conversa com outra que varre o chão:

- Não pode, vê se pode! Ela disse para mim que minha obrigação é sorrir enquanto a atendo.

- Humm...

Não sou obrigada a sorrir! Farei apenas o meu trabalho!

- É...

Neste tempo Osvaldo está ali apenas escutando. Não pede nada, curioso e intrigado pela história.

De repente ela olha para ele, o que produz um breve silêncio entre olhares. Dois ou três longos segundos de silêncio!

Maria ri uma risada larga e diz:

- Você ficou em silêncio escutando sem pedir nada?!

Osvaldo respondeu quase como um soluço:

- E você sorriu!

- É! (continua sorrindo).

Osvaldo pede os pães, agradece e vai embora.




Cena 2:

Em um dos momentos altos da narrativa, Gregor Samsa, personagem de Kafka, na Metamorfose, transformado em inseto, se fecha no quarto enquanto seus pais chamam seu chefe para retirá-lo de lá. Sua irmã Grete está entre a sala e o quarto de Gregor. Assim Kafka descreve a cena:

- Entenderam uma única palavra?  - perguntou o gerente aos pais. – Será que ele não nos está fazendo de bobos?

- Pelo amor de Deus! – exclamou a mãe já em lágrimas. – Talvez ele esteja seriamente doente e nós o atormentamos. Grete! Grete! – gritou então.

- Mamãe? – bradou a irmã do outro lado.

Elas se comunicavam através do quarto de Gregor.

- Você precisa ir imediatamente ao médico. Gregor está doente. Vá correndo ao médico. Você ouviu Gregor falar, agora? 

- Era uma voz de animal – disse o gerente, em voz sensivelmente mais baixa, comparada com os gritos da mãe.

Cena 3:




O inferno, 1510-1520 pintor português desconhecido.


Todos queriam ir para o céu no Auto da Barca do Inferno, mas seus pecados o empurravam para o inferno, para o deleite do diabo.  Ao tentar entrar na barca do anjo, o Corregedor diz:

Ó arrais dos gloriosos,

Passai-nos neste batel!

O Anjo:

Ó pragas pera papel,

Pera as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

Sendo filhos da ciência!

Corregedor:

Oh Habeatis clemência

E passai-nos como vossos!

Joane

Hou homens dos breviários,

Rapinastis coelhorum

Et pernis perdiguitorum

E mijais nos campanairos!

Joane (ou o Parvo) é um dos poucos não condenados pelo diabo. Apesar de seus pecados, chega desprovido de tudo, sem malícia. É uma alma pura, cujos valores são legítimos e sinceros. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Então, por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.

É Joane quem ajuda o Anjo a denunciar o Corregedor. Chamado de "praga do papel” pelo Anjo, Joane complementa referindo-se ao Corregedor como o homem dos “breviários”, dos manuais, ironia com quem segue livros e não a consciência, e critica também o uso mecânico das normas burocráticas.

Cena 4:   

Com muito custo o comando de greve entra na escola. Intervalo dos professores. Já dura duas semanas a greve. Uma altiva professora pede a palavra. Discursa sobre os motivos da greve.

Os minutos do intervalo correm... Os pensamentos dos professores que ouvem também. A professora Helena se incomoda com o comando de greve, mas não fala nada. Pensa consigo mesmo que eles não sabem sobre sua vida, não sabem o que ela sofre. Mas lhe vem à cabeça que ela também não sabe nada sobre aquela mulher, nem seu nome recorda... Olha o relógio e pensa: “poucos minutos de intervalo e ainda tem que aguentar este pessoal”. 

Nos momentos finais de sua fala a altiva professora diz:

- Colegas professores, por isto tudo precisamos aderir à greve e a paralisação. Eles não podem nos calar! O que acham?

Um vazio toma a sala. De alguma forma o co-mando pedia que todos se posicionassem. Naquele silêncio havia o mesmo peso de mando das palavras da altiva professora. De alguma forma aqueles professores ali sentados conseguiram, em meio à crise educacional, a ilusão de que seu mal-estar subjetivo era menos pior se mantendo no trabalho.  

Em meio ao silêncio, o “não podemos nos calar” ressoava na cabeça de Helena, e ela diz o que o discurso da altiva professora queria escutar: 

Se todos forem eu também vou, mas só no dia da paralisação!

Helena ocupa o lugar de Joane (ou Parvo), personagem do Auto da Barca do Inferno, e deseja garantir seu lugar no céu pela inocência. “Se todos forem não serei culpada sozinha, ou não precisarei assumir minha responsabilidade”, pensa Helena. Um traço do mundo privado, da Casa na cultura brasileira, faz os verdadeiros pecadores serem aqueles que desejam ocupar os espaços públicos. Eles estão ali na frente de Joane e de Helena, e estes merecerão a barca do inferno, certamente. 




Magritte, O terapeuta, 1936.


Palavras podem produzir um discurso, mas nem todos os discursos carregam palavras. Palavras tem a força de produzirem laços. Discursos muitas vezes produzem relações entre senhores e escravos.

Os tempos indicam que até o humor nos roubam. Não basta mais o resultado do trabalho, é preciso uma forma de ser no trabalho. Maria não quer dar para qualquer um seus sorrisos. Deseja que seu humor lhe seja singular.

 Freud já dizia que “o humor não é resignado, é rebelde, ele significa não apenas o triunfo do Eu, mas também do princípio do prazer, que nele consegue afirmar-se, contra a adversidade das circunstâncias reais”. Sorrir é resistir às circunstâncias da vida, seu mal-estar.  

Osvaldo escutou Maria, e ganhou um largo sorriso. Quem escuta Maria? Querem apenas que ela sorria, um sorriso que não é seu. O humor é uma marca de Gil Vicente. Homem da corte, que produziu mais de 40 peças encomendadas, e fez do Auto da Barca do Inferno uma sátira social na qual os personagens um a um eram desmascarados pela hipocrisia pela qual levavam suas vidas e pelos seus contraditórios ideais religiosos.

Gil Vicente consciente ou inconscientemente criticava os discursos que assujeitavam. O corregedor era um burocrata do papel e da ciência. Seu discurso era o que Lacan chamava de discurso do mestre, na qual há um senhor e um escravo. Portanto não era apenas o produto ou a atividade do trabalho que era expropriada, no que Marx chamava de mais-valia, mas o próprio discurso, uma forma de saber que marcou a tradição ocidental, e se faz como um mais-gozar do senhor.  

E é na Metamorfose que vemos os pais de Gregor Samsa chamarem o médico e o chefe. Ambos, médico e chefe, possuem o direito de gozar do discurso, de nomear e classificar o outro. Talvez se a Metamorfose fosse produzida hoje, Gregor seria diagnosticado com Síndrome de Burnout ou depressão. Nossa cultura ocidental acostumou-se a um lugar no sofrimento, um lugar de escravo. 

Quando Gregor vira um imenso inseto, a primeira coisa que se dá conta é a perda da voz e da palavra. Se (re)descobre no seu corpo de inseto como um ser que não tem direito a fala. Seu chefe aproxima-se do quarto e diz: “Entenderam o que ele fala?” e afirma quando o ouve: “Era uma voz de animal!”.

Assim como a mais-valia, o mais-gozar do discurso se renova. Adquire tons de conhecer profundo. Como diz Lacan, a palavra episteme significa “colocar-se em boa posição”. “Trata-se de encontrar a posição que permita que o saber se torne um saber de senhor”. 

E assim no mundo do trabalho, da ciência, da burocracia, das universidades, do capitalismo, da esquerda, da direita há um traço do discurso que tenta apagar qualquer forma de singularidade. Porque a singularidade carrega um traço político decisivo, ela nos remete ao espelho de nossa própria singularidade. Trata-se da política no sentido mais radical.

                   
                      Marcelo Tomassini, 30 de março de 2017 


Referências:

Lacan, O avesso da psicanálise – Zahar

Kafka, A Metamorfose – CIA das Letras

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, Atelie Editorial

S. Freud, O humor – Cia das Letras.