sábado, 26 de agosto de 2017

A cadeia do amor



Adolescentes, estudantes de uma escola organizaram uma brincadeira chamada “cadeia do amor”. A brincadeira da cadeia, popularmente conhecida nas festas juninas, na qual o divertimento é prender os colegas numa cadeia improvisada. O correio elegante, a maça do amor, a pescaria são mais alguns símbolos da festa.  

No entanto, a criatividade dos adolescentes produziu outra versão da brincadeira. E brincar, já dizia Freud, é a possibilidade de colocar em prática, sem censuras, nossos desejos. Natural para adolescentes num momento de descoberta e reconhecimento da sexualidade, da relação com o outro e com seu próprio corpo.

Na nova versão da brincadeira prendiam-se duas pessoas. Para sair se beijariam ou pagariam uma fiança. A princípio uma forma de não se comprometerem totalmente com as consequências do desejo, visto que a dinâmica do jogo se dava pelo pagamento da ficha que alguém faria para prender as pessoas.   

Na escola, a brincadeira guardava muitas reticências e contrariedades de professores e direção. Conta-se que tempos atrás alguns adolescentes teriam passado dos limites. A tal história se constitui como um paradigma moral e torna-se mais simples usá-la para dizer não aos estudantes.

Com regras e normas os adolescentes conseguiram realizar uma experiência de duas horas da brincadeira na festa junina. Mas com o objetivo de que a cadeia do amor virasse algo mais próximo de uma cadeia, típica brincadeira das festas juninas.  

No dia da realização da “cadeia do amor” o que ocorreu revelou mais do que simplesmente o desejo de descoberta da sexualidade por parte dos jovens. Ou melhor, desnudou uma forma de sexualidade, uma forma de amar.



Os adolescentes fizeram uma cabana na qual havia frestas para olharem. Muitos eram carregados contra a vontade, meninas e meninos ficavam constrangidos na cadeia, e estes eram vigiados pelos demais numa cena que lembrava um pequeno espetáculo.

Alguns beijos ocorreram, mas a grande questão não era o beijo em si, mas o ritual que cercava o ato e expressava uma forma de relacionar-se. A cadeia do amor não era mera contradição, “cadeia” e “amor”, mas uma condição. Condição que dizia sobre a vida deles, sobre a cultura do bairro e da própria instituição escolar.

Uma experiência e tanto para pensar a sexualidade na escola, de um ponto de vista ético. Mas a escola, como instituição, pela sua dinâmica, esmaga a subjetividade dos que nela trabalham e estudam. A jornada e as condições de trabalho combinada a formação bacharelesca torna o espaço escolar pouco suscetível ao tempo das reflexões. 

 O esmagamento do espaço escolar se expressa pela circularidade de uma moralidade que norteia suas ações. A moral é uma forma de realizar as coisas, fixa, nada reflexiva e presa a uma tradição. “As coisas são assim porque é o correto!” 

A excessiva saída moral da escola revela que esta abriga em sua essência o conflito. E é no conflito que se encontra a potencialidade para a reflexão. Neste jogo entre a moral e o conflito que surge o mal-estar, a incerteza do desejo do outro e da própria abertura para as possibilidades de pensar.  

Na brincadeira dos adolescentes havia uma forma de amar encadeada, presa à cadeia. Como poderíamos pensar “cadeia” e “amor”, que encadeamento amoroso era este? Seria preciso expandir, ampliar a visão daquele ato.   
       
Em outros momentos, em conversa com os pais, escutava que gostavam da escola porque esta se preocupava com os alunos. Indagava sempre o que era se preocupar? E eles associavam a vigiar. Vigiar tornara-se uma forma de amar, de cuidar. “Eu não deixo meu filho ir à casa do colega, porque eu não confio que ele vai estudar”, escutei mais de uma vez dos pais. Nesta frase há um contraditório amor, como na brincadeira da cadeia do amor.

A dificuldade dos alunos de fazerem trabalhos em grupos fora da escola era resultado do medo dos pais de deixarem as crianças irem à casa dos colegas. Por um lado o medo de abusos sexuais na casa de estranhos, mas também a não confiança que de fato iriam fazer trabalhos. A escola, segundo os pais, deveria criar formas para os filhos se organizarem em grupo fora do horário convencional, vigiados. Uma demanda justa, mas uma demanda de mais cadeia e amor.  

A maneira como os adolescentes organizaram sua forma de amar deu-se através do abuso, abuso do desejo do outro. Carregar, constranger, vigiar tornou-se por fim a forma que encontraram de amar. 

Certa rigidez moral diz o que é da ordem da escola e o que não é como se isto fosse inteiramente possível. O discurso é de que a escola não pode ir “para além do pedagógico”. Esta é uma visão, uma perspectiva do pedagógico que norteia muitas escolas particulares e públicas. “Nos preocupamos com as boas e más notas”, é o discurso que garante o lugar do mestre, do gozo daquele que sabe. 
   
  A cadeia do amor indica a necessidade de pensar novas maneiras de amar, e elas passam por uma forma de cuidar, um cuidado de si.  A cadeia do amor não deixa de evidenciar como o amor se realiza, mas também como nos escapa. Não diz somente sobre a escola, mas sobre o emaranhado que se estabelece na cultura, na escola e na família. Na aposta que fazemos na autonomia dos adolescentes, no mal-estar que isto produz nos adultos no exercício pedagógico de se tornarem “descartáveis”.

Parece que a escola encontra-se neste local de socialização intermediária da casa e de um determinado mundo fora da casa, no “entre”. É neste “entre”, de divisão, abertura, fragmentação, e também de entrada, que se dá a impossibilidade do controle moral absoluto. E tanto mais moralidade, mais manifestações do não-dito, dos sintomas.

 E é deste lugar intermediário, do “entre”, que se vê a potência de um lugar ético, o qual permita ao adolescente se reconhecer e se responsabilizar nas suas escolhas e incertezas. Uma nova forma de cuidar de si e amar. 
  


                            Marcelo Tomassini, 26 de Agosto de 2017.