sábado, 31 de dezembro de 2016

A virada de ano

O fio e o fardo da tradição 




“A autêntica fruição da obra literária vem da libertação de tensões em nossa psique. E talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato de que o escritor nos permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e pudor”

Sigmund Freud

Milhares de pessoas se reúnem para as comemorações da virada de ano.  Lamentam ou festejam o ano que passou e desejam um ano melhor ou tão bom quanto o anterior. Trata-se de um ritual na qual todos nós de alguma forma abandonamos a ilusão de um Eu inteiro racional e fantasiamos promessas e desejos para o ano que virá.

A virada do ano é uma grande brincadeira aonde as barreiras culturais que separam adultos e crianças diminuem em um encontro com nossa própria criança interior. É através da brincadeira que a criança pode levar a sério o mundo investindo grandes montantes de afeto. A virada do ano é a possibilidade de fantasiar coletivamente. Vestir branco, amarelo, azul, usar correntinhas, pular ondinhas, soltar fogos, rituais para renovar a esperança na incerteza do amanhã.   

“A pessoa em crescimento, quando para de brincar, apenas abandona o apoio em objetos reais; em vez de brincar, ela fantasia”, diz Freud. Este ato de fantasiar não é a brincadeira em público da criança. Os adultos escondem suas fantasias em nome do princípio da realidade. Mas os rituais e as festas são os momentos que permitem este retorno.  

Freud dizia que as impressões que temos no presente despertam um desejo que retrocede à lembranças de uma vivência anterior, geralmente infantil, na qual aquele desejo era realizado. Estas fantasias são extensões do que um dia foi a brincadeira infantil. A fantasia que 2017 será melhor porque um grande Outro assim o quer, não difere muito do poder que as crianças tem em suas brincadeiras.  

Os poetas e escritores, assim como a arte e a mitologia, foram grandes interlocutores de Freud. Relegados a devaneios pela ciência, a literatura, a arte e a mitologia abriram possibilidades únicas de reflexões para a psicanálise. Hoje temos consciência como a literatura, por exemplo, inaugurou a reflexão de muitas das questões e aflições humanas.

Antonio Candido, ao discorrer sobre a obra de  Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, conta um diálogo que teve com o escritor:

“(...) No decorrer da conversa, estavamos discutindo as posições ideológicas do congresso... eu declarei que era socialista. E que pra mim aquelas posições eram normais. Guimarães Rosa disse "que achava normal eu defender o socialismo, que por ele todo mundo seria igual e feliz, não tem problema nenhum, que o ideal da terra é justamente a igualdade de todos, mas que isso não era um problema fundamental. O único problema fundamental do homem era saber se Deus existe ou não". Achei isso muito interessante. Para mim o mundo do Guimarães Rosa não é Minas, o mundo do Guimarães Rosa é o mundo. Porque o Sertão é o mundo porque dentro do enquadramento rigoroso documentado do sertão mineiro, aquilo serviu de palco para ele desenvolver o drama que ocorre em qualquer lugar do mundo. Ocorre em Dostoievski, ocorre em Proust, ocorre em Sthendal, ocorre em Joyce... que são os problemas do homem. Quem sou eu? Quem é você? Deus existe? Deus não existe? O que é o bem? O que é o mal? O culpado é ele ou sou eu? É isso que é a base dos problemas do homem. E é isso que está em Grande Sertão Veredas. Isto transcende muito o Sertão, por isto digo que o Sertão é o mundo.”

Guimarães Rosa já revelava em sua literatura o que a ciência demonstra décadas depois: “nove entre dez brasileiros dizem que seu sucesso financeiro se deve a Deus”, diz a pesquisa do Datafolha. Nem ateus se salvariam ou melhor: até eles tentam se salvar. Em tempos que o Eu parece tão inteiro pelo microespetáculo virtual, Gilberto Freyre na década de 30 captou um traço de nossa cultura. Dizia ele que o brasileiro é um povo místico, pois é um povo de origem da floresta.



Nada é mais misterioso e inquietante que a floresta. Seus múltiplos cheiros, sons e sensações e a incapacidade de ver longe, o horizonte. A civilização “tamponou" os nossos múltiplos sentidos em nome da visão de um horizonte. É por isto que destrói a floresta com um ódio sistemático. O futuro de uma ilusão é também este horizonte que mesmo após 516 anos movimenta as “consciências”. Mesmo assim nosso misticismo carrega um traço filogenético indígena, recalcado. O misticismo como fenômeno é este retorno que acaba representado por múltiplas perspectivas místicas: cristãs, espíritas, afro-brasileiras, budistas, astrológicas, tecnológicas, mas que foi semeado em Uma terra da floresta.

A máxima freudiana de que não somos senhores dentro de nossa própria casa jogou luz sobre a cisão do sujeito da modernidade. É como a pintura de René Magritte, "O Império das Luzes”. O jogo de luzes do céu com a sombra da casa, o reflexo do lago, as luzes acesas e apagadas das janelas. Tudo é muito familiar, inquietante, contraditório. Ou como diz Machado: "A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos."


René Magritte "O Império das Luzes” – 1954

A virada do ano é a possibilidade que a cultura nos dá de fantasiar o fio e o fardo de nossa história coletiva e particular. O virar-se para o passado e o futuro. E o que iremos fazer com este fio e este fardo, eis a tragédia de cada sujeito ou a floresta que cada qual deve se dar conta; não há horizonte. Mudam-se os caminhos, mas carregam-se sempre o fio e o fardo da condição humana. A velhice, a morte, a incerteza, o imponderado, as escolhas, nossa história familiar, as relações com o outro e com o mundo, nossa condição humana, nosso mal-estar.  

Na mitologia romana, mas também etrusca, Jano era o porteiro celestial, sendo representado com duas cabeças, simbolizando os términos e os começos, o passado e o futuro, o dualismo relativo de todas as coisas, sendo absoluto somente a Divindade. Jano preside tudo o que se abre, é o deus tutelar de todos os começos; rege ainda tudo aquilo que regressa ou que se fecha, sendo patrono de todos os finais. Jano foi a inspiração do nome do primeiro mês do ano (janeiro, do latim januarius).



E é justamente em janeiro, segundo a tradição, nosso fio e nosso fardo, que podemos fantasiar nosso eterno recomeçar.

                                                    
                                                              Marcelo Tomassini - 31 de dezembro de 2016 

Referências:

S. Freud - O escritor e sua fantasia (1908) . – CIA das Letras.

Don Casmurro – Machado de Assis – Vozes.

Gilberto Freyre – Casa Grande e Senzala – Editora Globo.

Entrevista com Antônio Candido:

(https://www.youtube.com/watch?v=nn9YMb6S7VQ) 

Pesquisa Datafolha:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1844383-nove-entre-dez-brasileiros-atribuem-a-deus-sucesso-financeiro.shtml