O fio e o fardo da tradição
“A autêntica fruição da obra literária vem da libertação de tensões em nossa psique. E talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato de que o escritor nos permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e pudor”
Sigmund
Freud
Milhares de pessoas se reúnem para
as comemorações da virada de ano. Lamentam
ou festejam o ano que passou e desejam um ano melhor ou tão bom quanto o
anterior. Trata-se de um ritual na qual todos nós de alguma forma
abandonamos a ilusão de um Eu inteiro racional e fantasiamos promessas e desejos para o ano que virá.
A virada do ano é uma grande
brincadeira aonde as barreiras culturais que separam adultos e crianças
diminuem em um encontro com nossa própria criança interior. É através da brincadeira que a criança pode
levar a sério o mundo investindo grandes montantes de afeto. A virada do ano é
a possibilidade de fantasiar coletivamente. Vestir branco, amarelo, azul, usar
correntinhas, pular ondinhas, soltar fogos, rituais para renovar a
esperança na incerteza do amanhã.
“A pessoa em crescimento, quando
para de brincar, apenas abandona o apoio em objetos reais; em vez de brincar,
ela fantasia”, diz Freud. Este ato de fantasiar não é a brincadeira em
público da criança. Os adultos escondem suas fantasias em nome do princípio da
realidade. Mas os rituais e as festas são os momentos que permitem este retorno.
Freud dizia que as impressões que
temos no presente despertam um desejo que retrocede à lembranças de uma
vivência anterior, geralmente infantil, na qual aquele desejo era realizado.
Estas fantasias são extensões do que um dia foi a brincadeira infantil. A
fantasia que 2017 será melhor porque um grande Outro assim o quer, não difere
muito do poder que as crianças tem em suas brincadeiras.
Os poetas e escritores, assim como
a arte e a mitologia, foram grandes interlocutores de Freud. Relegados a
devaneios pela ciência, a literatura, a arte e a mitologia abriram
possibilidades únicas de reflexões para a psicanálise. Hoje temos consciência
como a literatura, por exemplo, inaugurou a reflexão de muitas das questões e
aflições humanas.
Antonio Candido, ao discorrer
sobre a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, conta um diálogo que teve com o escritor:
“(...) No decorrer da conversa,
estavamos discutindo as posições ideológicas do congresso... eu declarei que era
socialista. E que pra mim aquelas posições eram normais. Guimarães Rosa disse "que achava normal eu defender o socialismo, que por ele todo mundo seria igual
e feliz, não tem problema nenhum, que o ideal da terra é justamente a igualdade
de todos, mas que isso não era um problema fundamental. O único problema
fundamental do homem era saber se Deus existe ou não". Achei isso muito
interessante. Para mim o mundo do Guimarães Rosa não é Minas, o mundo do
Guimarães Rosa é o mundo. Porque o Sertão é o mundo porque dentro do
enquadramento rigoroso documentado do sertão mineiro, aquilo serviu de palco
para ele desenvolver o drama que ocorre em qualquer lugar do mundo. Ocorre em
Dostoievski, ocorre em Proust, ocorre em Sthendal, ocorre em Joyce... que são
os problemas do homem. Quem sou eu? Quem é você? Deus existe? Deus não existe? O
que é o bem? O que é o mal? O culpado é ele ou sou eu? É isso que é a base dos
problemas do homem. E é isso que está em Grande Sertão Veredas. Isto transcende
muito o Sertão, por isto digo que o Sertão é o mundo.”
Guimarães Rosa já revelava em sua
literatura o que a ciência demonstra décadas depois: “nove entre dez
brasileiros dizem que seu sucesso financeiro se deve a Deus”, diz a pesquisa do
Datafolha. Nem ateus se salvariam ou melhor: até eles tentam se salvar. Em
tempos que o Eu parece tão inteiro
pelo microespetáculo virtual, Gilberto Freyre na década de 30 captou um traço
de nossa cultura. Dizia ele que o brasileiro é um povo místico, pois é um povo de
origem da floresta.
Nada é mais misterioso e
inquietante que a floresta. Seus múltiplos cheiros, sons e sensações e a
incapacidade de ver longe, o horizonte. A civilização “tamponou" os nossos
múltiplos sentidos em nome da visão de um horizonte. É por isto que destrói a
floresta com um ódio sistemático. O futuro de uma ilusão é também este
horizonte que mesmo após 516 anos movimenta as “consciências”. Mesmo assim
nosso misticismo carrega um traço filogenético indígena, recalcado. O
misticismo como fenômeno é este retorno que acaba representado por múltiplas
perspectivas místicas: cristãs, espíritas, afro-brasileiras, budistas,
astrológicas, tecnológicas, mas que foi semeado em Uma terra da floresta.
A máxima freudiana de que não
somos senhores dentro de nossa própria casa jogou luz sobre a cisão do sujeito
da modernidade. É como a pintura de René Magritte, "O Império das Luzes”. O
jogo de luzes do céu com a sombra da casa, o reflexo do lago, as luzes acesas e
apagadas das janelas. Tudo é muito familiar, inquietante, contraditório. Ou
como diz Machado: "A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta,
não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também há
fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de
conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços
suntuosos."
René Magritte "O Império das
Luzes” – 1954
A
virada do ano é a possibilidade que a cultura nos dá de fantasiar o fio e o
fardo de nossa história coletiva e particular. O virar-se para o passado e o
futuro. E o que iremos fazer com este fio e este fardo, eis a tragédia de cada
sujeito ou a floresta que cada qual deve se dar conta; não há horizonte. Mudam-se
os caminhos, mas carregam-se sempre o fio e o fardo da condição humana. A
velhice, a morte, a incerteza, o imponderado, as escolhas, nossa história familiar, as relações com o
outro e com o mundo, nossa condição humana, nosso mal-estar.
Na
mitologia romana, mas também etrusca, Jano era o
porteiro celestial, sendo representado com duas cabeças, simbolizando os
términos e os começos, o passado e o futuro, o dualismo relativo de todas as
coisas, sendo absoluto somente a Divindade. Jano preside tudo o que se abre, é
o deus tutelar de todos os começos; rege ainda tudo aquilo que regressa ou que
se fecha, sendo patrono de todos os finais. Jano foi a inspiração do nome do
primeiro mês do ano (janeiro, do latim januarius).
E é justamente em janeiro,
segundo a tradição, nosso fio e nosso fardo, que podemos fantasiar nosso eterno
recomeçar.
Marcelo Tomassini - 31 de dezembro de 2016
Marcelo Tomassini - 31 de dezembro de 2016
Referências:
S. Freud - O escritor e
sua fantasia (1908) . – CIA das Letras.
Don Casmurro – Machado de
Assis – Vozes.
Gilberto Freyre – Casa Grande
e Senzala – Editora Globo.
Entrevista
com Antônio Candido:
(https://www.youtube.com/watch?v=nn9YMb6S7VQ)
Pesquisa
Datafolha:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1844383-nove-entre-dez-brasileiros-atribuem-a-deus-sucesso-financeiro.shtml
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