segunda-feira, 7 de novembro de 2016

As ocupações das escolas e o mal-estar na cultura

                O lugar da criança e do adolescente na cultura



Em junho de 2013 quando trabalhava em uma escola na Brasilândia, acompanhei uma manifestação na região. As grandes manifestações na Paulista começavam a se expandir para os bairros. Quando cheguei nesta manifestação, escuto: “e ai professor, tudo bem?”, “e ai professor, beleza!”. Eram alunos da escola que trabalhava. Adolescentes, crianças de quinta a oitava série, de 11 a 14 anos. Representavam 80%, 90% das pessoas presentes. Lembro que fiquei com uma questão em mente: qual seria o impacto desta experiência para a formação deles?

Naquele momento político de junho as pessoas discutiam que as manifestações eram apenas de jovens da classe média ou universitários, o que se expressava na própria geografia dos atos, a avenida Paulista. O movimento começava a descentralizar para os bairros periféricos, e era extremamente jovem.

No ano passado tivemos as ocupações de escolas em São Paulo na qual pude acompanhar visitando e conversando com os alunos. A prática das ocupações espalhou-se pelo Brasil e hoje vivenciamos o maior movimento estudantil secundarista da história da República.

Mas desde aquele momento de 2013, naquela manifestação da Brasilândia até hoje, o contradiscurso mais forte que é produzido por vários segmentos sociais e políticos é que estes adolescentes estão sendo influenciados por partidos, políticos, professores, etc. As possibilidades dos agentes da manipulação são variadas, mas todos tem algo em comum: são do mundo adulto.

Adultos são os únicos que teriam capacidade de pensar plena e racionalmente. E aqui não estou pensando simplesmente a lei, a legislação do Estado, que de forma justa protege a criança e o adolescente. Estou pensando para além da lei, ou melhor, a lei da cultura, mais forte que qualquer outra lei, porque carrega a tradição de centenas de anos, do além mar.

As ocupações produzem um incomodo não discutido, um tabu, e não é sua pauta em defesa da educação, mas o próprio lugar social da criança e do adolescente na cultura. Do lugar de cidadãos não plenos, para cidadãos plenos de poder e de responsabilização de suas escolhas e desejos.


O mercado publicitário já percebeu o lugar do desejo das crianças e orienta suas propagandas para elas. Mas ainda há uma resistência inconsciente que faz com que o mundo adulto se recuse a dar o lugar de destaque que os adolescentes ocupam hoje. E isto acontece nos campos da direita e da esquerda política no Brasil. Apoiar as ocupações é muito diferente de se permitir aprender com estes jovens. E quem visitou uma ocupação sabe o quanto de libido corre entre eles. A construção de laços de cumplicidade, confiança e amor. Trata-se de Eros, a pulsão de vida.

Há pelo menos duas décadas as escolas lidam com formas de indisciplina que são particulares do nosso tempo. O que se escuta na sala dos professores é que “antigamente havia respeito”. Por trás deste discurso há a força da tradição: o mundo adulto e o mundo da criança.

Nesta dicotomia há, é verdade, muito pouco espaço, tempo, condições de trabalho e desejo para os professores refletirem se não é esta mesma dicotomia a fantasia que produz o sofrimento do professor. Sofrimento econômico, social e simbólico.

Penso se não é a própria experiência que por tantos anos definiu a separação dicotômica do mundo adulto e infantil que não está em crise. Como se nosso capitalismo de desenvolvimento hipertardio finalmente vivenciasse em sua plenitude a própria crise da narrativa benjaminiana: “a arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade – está em extinção”. (O narrador, Walter Benjamin). Os mais velhos, neste sentido, perderam a própria possibilidade da experiência narrativa? E estas crianças e adolescentes ao produzirem suas próprias experiências tornam-se o maior sintoma desta crise.  

De tempos em tempos gosto de reler um livro que traz um conjunto de artigos do Adorno, “Educação e emancipação”. Algumas reflexões sobre a educação pós-segunda guerra mundial e a barbárie do nazismo. Afinal, como o nazismo conseguiu produzir um grau de indiferença tão intenso para com o outro. Eichmann em seu julgamento dizia que só cumpria ordens. Era apenas uma peça no sistema. Isto lhe tira a culpa? Lhe exime da responsabilidade de pensar? E é importante tornar presente estes verbos.

Em um dos textos de “Educação e emancipação”, Tabus acerca do Magistério, Adorno diz que há um conjunto de “representações inconscientes ou pré-conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão como que uma interdição psíquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas”.

Mesmo na Alemanha de Adorno na qual os professores secundários não ganhavam mal, haveria algo que está na ordem da tradição, que permanece na cultura e no plano inconsciente. Esta tradição remonta a ideia que juízes, funcionários especializados (e médicos), por exemplo, carregariam um poder real, enquanto os professores tem um poder sobre sujeitos não totalmente plenos, as crianças. “O poder do professor é execrado porque só parodia o poder verdadeiro que é admirado”, diz Adorno.  


Em 1905, em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud escancarou o mal-estar ao falar sobre a sexualidade infantil.  As descobertas de Freud sobre a sexualidade infantil provocaram grande espanto na sexualidade conservadora do final do século 19 e início dos 20, pois a criança era vista como um símbolo de pureza, um ser assexuado. Como pensar que a criança tem prazer? E explora este prazer no corpo. Como pensar que a criança tem desejo? Questões que ainda hoje deixam pais, escola e sociedade presos a respostas prontas. E a força da tradição e da resistência é tão grande que ao não conseguir desmoralizar a teoria freudiana, há transformam num catálogo da tradição: “a fase oral, a fase anal, a fase genital”.   

Freud dizia que educar faz parte das profissões impossíveis. Depois de onze anos como professor de escolas públicas e particulares concordo com ele. Mas quando Freud diz que educar é uma profissão impossível, ele se refere ao ato de educar e sua impossibilidade de controlar, por qualquer mecanismo pedagógico, o desejo do outro.

 Se educar, de modo simples, é a possibilidade de transmissão de conhecimento, nunca sabemos ao certo (e esta é uma das angústias docentes), o quanto tocamos o outro. E a fantasia que amarra o imaginário docente produz formas de reconhecimento que já se tornaram clichês educacionais.

Arrisco-me a dizer que nenhuma outra profissão é recheada de tantos clichês por causa desta condição não reconhecida de incompletude. “É ensinando que se aprende”, “aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo, e nunca se arrepende”, “eduquem as crianças e não será necessário castigar os adultos” e por ai vai. Toda a tradição ocidental está impregnada destas frases e “saberes” descontextualizados e com um verniz da atualidade: motivacional e de autoajuda. É a incessante tentativa que os educadores fazem para se automotivarem e as próprias dificuldades raramente esclarecidas às crianças.

É na esperança de tornar-se completa, naquilo que o poder real garantiria como premissa, que o mal-estar educacional no Brasil atinge patamares nunca vistos. E os professores tornam-se o agente sádico e ao mesmo tempo masoquista da engrenagem. Quanto mais alimentam o lugar sádico que a tradição escolar os remete, mas são devorados por sua condição de linha de frente do sistema escolar. A desistência, o abstencionismo, a readaptação, as patologias físicas e psíquicas comprovam que o mal-estar docente não é passageiro, mas a própria realidade imanente da profissão.


E é interessante observar que este lugar social e cultural da criança produz efeitos em outras profissões. A pediatria também lida com este poder não pleno, ao tratar com crianças. Não é difícil pesquisar na internet uma série de artigos que evidenciam a crise da profissão.

Segundo o site da associação paulista de medicina “O Pediatra necessita de tempo para dedicar toda essa atenção e, para tanto, deve atuar em condições adequadas, bem como ser remunerado de maneira justa. (...) Muitos de nós, Pediatras, ainda vemos esta especialidade com romantismo, reconhecendo nela a beleza que de fato a cerca. Acompanhamos a criança desde o seu nascimento até a idade adulta”.

É irônico pensar que basta apenas trocar a palavra “pediatra” por “professor” e este texto pode ser reconhecido por qualquer um que trabalhe no espaço escolar. O texto continua:

“Entretanto, com grande preocupação convivemos nos dias atuais com o que podemos chamar de decadência na forma de atuação do Médico, em especial do Pediatra. Várias são as causas desse fato, tais como a baixa remuneração do profissional, a pressão pela quantidade de atendimentos realizados, o não pagamento de consultas de retorno pelos Convênios, a falta de informação dos pais que procuram atendimento por qualquer motivo”. (http://www.apmsjc.com.br/artigos/pediatria_extincao.htm).  

O mal-estar também é resultado do projeto emancipador atribuído à escola. Nada é mais controlador e frágil do que acreditar que a escola pode ocupar este lugar de esclarecimento. E Adorno também era adepto desta tentação iluminista: “O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto”. (Tabus acerca do magistério).

As lutas dos adolescentes trazem, na sua perspectiva geracional, uma crítica bem óbvia, talvez por isto de difícil visualização. Esta crítica produz um mal-estar mais intenso na atualidade. Lutam pelo lugar de reconhecimento na cultura, de sujeitos plenos, contra os discursos que os assujeitam, dos mestres de esquerda ou de direita. Deste gozo o mundo adulto não quer abrir mão.  

Por isto, penso que as lutas são também expressões de embates culturais, geracionais e de reconhecimento narcísico que fazem os adolescentes ocuparem lugares de protagonismo. Este é um conflito que a instituição escolar abriga há anos. A conjuntura criou as condições para que ele se escancare socialmente e que transborde os muros da escola.


                                                              Marcelo Tomassini, 7 de novembro de 2016 

Referências:

“Tabus acerca do magistério no livro Educação e Emancipação” do Theodor W. Adorno – Paz e Terra.

“O Narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” no livro Obras Escolhidas de Walter Benjamin – Editora Brasiliense.

“Análise terminável e interminável” (1937) – S. Freud. (internet)

“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) – S. Freud. (internet)
 

 


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