Black Mirror e o além do princípio tecnológico
A série inglesa Black Mirror está de volta em sua terceira temporada. Seu primeiro episódio chama-se Nosedive ou “O perdedor” pela Netflix. Nosedive pode ser traduzido como a queda ou mergulho de um avião de frente ou de nariz (nose dive). Despencar, queda, descida abrupta, palavras associadas à Nosedive. Já “perdedor” traz os significados de malsucedido e derrotado, segundo o dicionário Caldas Aulete.
A
série Black Mirror é uma distopia aparentemente relacionada a uma crítica do mundo virtual ou como as tecnologias têm
influenciado nossas vidas. Desde a máquina a vapor em 1750 na Inglaterra e o
surgimento das patentes, o nascente capitalismo industrial associou técnica e ciência (tecnologia), e tornou essencial ao desenvolvimento do capital.
No
livro “A Sociedade do espetáculo” (1967), Guy Debord discute como as modernas
condições de produção engendram-se em uma acumulação de espetáculos. Nesta
acumulação que se apresenta por imagens, a oposição vencedor-perdedor, winner-loser é a tradução da subjetividade contemporânea.
Não
estaríamos mais na fase da máquina a vapor, mas em um momento em que “o
espetáculo domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente”. É
a imagem de vencedores que nos torna vencedores, pois o espetáculo segundo Guy
Debord, “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens”.
A
sociedade em Nosedive é organizada
por uma forma de reconhecimento quantitativa: uma nota, uma média, na qual cada
um administra e que varia em uma escala de 0 a 5. As avaliações representam
mais ou menos oportunidades no trabalho, no consumo, nas relações afetivas etc. São o lugar do sucesso ou do fracasso do indivíduo.
Dia-a-dia Lacie administra sua imagem (seu ego?), até que em uma cena recebe uma avaliação 4 de uma amiga, o que a faz ficar pensativa. É na nota abaixo do esperado que se abre um sentimento de duplicidade, a comparação e a inveja da amiga e sua própria condição de não perfeição. Um campo contraditório importante para reflexão e associação na clínica.
Os
episódios da série Black Mirror além
da tecnologia e do mal-estar, tem uma característica em comum: não há saída. As
histórias evidenciam apenas o cinismo generalizado de um tempo em que todos são
objetos. Mesmo aqueles personagens que parecem buscar seus desejos e sair da
trama que os amarra, como no episódio dois da primeira temporada, Fifteen Million Merits. Nesta história, o personagem Bing,
apaixonado por Abi, e furioso com o programa de auditório que os separou, se
depara na mesma situação que ela, e acaba por fazer as mesmas escolhas. Entre a
dura realidade do cotidiano e o cinismo da fama, escolhe a fama.
Nosedive quebra um pouco este destino comum dos episódios anteriores. O episódio termina com um grande “Fuck You!” Na cadeia,
suja, machucada, no lugar onde a compulsão por reconhecimento lhe trouxe, a
personagem solta um grande “foda-se” a tudo e a todos. Pode-se imaginar que
nesta situação é fácil; mas não é. E é neste momento que Lacie poderia produzir
um lugar para seu desejo. Uma possibilidade de rearticulação da pulsão de
vida e de morte. Seria isto uma saída? Só Lacie poderia responder.
Em
uma sociedade mediada por imagens, a sombra da comparação é permanente.
Naomi, a amiga de infância de Lacie, representa esta personagem. Ao convidar
Lacie para ser dama de honra de seu casamento parece haver alguma autenticidade
nas experiências de infância vividas pelas duas. Mas na verdade o cálculo de
reconhecimento estava sendo feito por ambas.
Seu
irmão, Ryan, que divide a casa com ela, se coloca neste momento quase como uma
voz superegóica de Lacie, avisando que Naomi nunca fora sua amiga e que seu
discurso pronto para conseguir aumentar sua avaliação é falso. As
histórias de vida dos personagens são empobrecidas, o que destaca a “cultura narcísica” da atualidade.
Lacie
furiosa com o irmão diz que nunca trouxe um homem em casa porque não queria que
soubessem que morava com um fracassado. O imaginário da cultura conectou-se ao
próprio imaginário de Lacie. Uma casa nova, com um “príncipe encantado”, fora a
maneira como a corretora a convenceu de alugar um apartamento e buscar uma
empresa de marketing pessoal, “Reputelligent
– 5 estrelas” para aumentar sua avaliação.
Lacie, em Nosedive, Black Mirror.
O narcisismo pensado por Freud em 1915 não é um adjetivo. O
narcisismo é um conceito que revoluciona toda a teoria freudiana, pois é
fundamental para a constituição de todo sujeito. Neste sentido sua falta é tão
prejudicial quanto seu excesso. Toda criança precisa de uma fase de narcisização, para produzir sua própria
unidade subjetiva. “Sua majestade, o bebê”, dizia Freud. Mas manter a criança e
o adulto em estado superinvestido pode produzir um lugar infantilizado e
onipotente como marca subjetiva; de príncipes e princesas que não sabem lidar
com sua falta, com o desamparo e a desilusão, próprios da condição humana e da
castração.
É
no dialogo com Susan, a caminhoneira, que a questão da falta reaparece. Susan tem nota 1,4, diz que
era parecida com Lacie e que já teve nota 4,6. Mas tudo mudou quando seu
marido teve câncer. Os médicos atendiam, ela dava nota alta, mas o câncer pouco
se importava, e continuou a crescer. Ao buscar atendimento num hospital com
tratamento experimental, ele não foi atendido, sua nota era 4,3 e o hospital exigia
4,4. Depois de sua morte Susan desistiu de querer agradar a todos. Ela passou
a dizer o que queria e quando queria. Os amigos e parentes se afastaram.
Lacie
e Susan conversam:
- Não posso simplesmente tirar os
sapatos e sair caminhando por ai.
- Não vai saber se não tentar.
- É que... Bem você tinha
conquistado coisas na sua vida. Coisas reais, coisas boas, e acabou perdendo
tudo. Sinto muito. Agora você não tem mais nada a perder. Eu ainda tenho o que
perder. Ainda estou lutando para conseguir essa coisa.
- E o que essa coisa é?
- Sei lá... Algo que me deixe
feliz? Tipo olhar ao meu redor e pensar que estou bem de vida. Ser capaz de
respirar sem me sentir... Meio que... Enfim, falta muito para chegar lá. Até
chegar lá, tenho que entrar no joguinho dos números. Todos temos. Estamos
atolados nisso. Essa porra desse mundo funciona assim.
Prefiro
pensar Nosedive como “A queda”. A palavra
queda me remete a uma tradição mais ampla do mundo ocidental. Relaciona-se a
própria ideia de "fortuna" (Roma Antiga) ou "tykhe" (Grécia Antiga). Estes
conceitos representam o "Acaso", que no mundo antigo se relacionavam às
divindades responsáveis pela fortuna e o destino de uma cidade.
Mas
na tragédia grega são os elementos acidentais que carregam a própria condição
humana: o saber e o não saber; o dito e o não dito que no mundo moderno se
apresentará na própria cisão, fragmentação do homem e sua subjetividade. A
modernidade internalizou nosso conflito civilizatório. Pagamos um alto preço pulsional
pelos avanços da civilização, já mostrou Freud em O Mal-estar da Civilização (1930).
Em
tragédias gregas como Édipo Rei e Medéia, peças de Sófocles e Eurípedes, o
acaso explicita a própria condição humana de lidar com nossas escolhas, nossos
desejos e não ter controle sobre suas consequências. Édipo sabe ou não sabe de
seu destino: matar o pai e desposar a mãe? Ao responder ao enigma da esfinge
com seu próprio nome, “Oidípous” (os
pés marcados, os pés inchados) vemos que o acaso, o acidental carrega em Édipo uma
marca que Lacan vai denominar como real. É este real que se repete nas escolhas
acidentais, casuais em Édipo, e que expressam a nossa própria condição humana e
geracional.
Na
Idade Média a roda da fortuna foi um símbolo conhecido. Os manuscritos
denominados Carmina Burana, textos e
poemas produzidos por monges entre os séculos 11 e 13 eternizaram “a fortuna”.
Em 1936 o compositor alemão Carl Orff musicou alguns versos destes manuscritos
e reverenciou a tradição da fortuna no mundo ocidental. Um trecho da letra e a interpretação da composição
que muitos já devem ter ouvido:
Em latim Em
português
O
Fortuna, Ó Sorte,
Velut
Luna És como a Lua
Statu
variabilis, Mutável,
Semper
crescis Sempre aumentas
Aut
decrescis; Ou diminuis;
Vita
detestabilis A detestável vida
Nunc
obdurat Ora oprime
Et
tunc curat E ora cura
Ludo
mentis aciem, Para brincar com a mente;
Egestatem, Miséria,
Potestatem Poder,
Dissolvit
ut glaciem. Ela os funde como
gelo.
Sors
immanis Sorte imensa
Et
inanis, E vazia,
Rota
tu volubilis Tu, roda volúvel
Status
malus, És má,
Vana
salus Vã é a felicidade
Semper
dissolubilis, Sempre dissolúvel,
Obumbrata Nebulosa
Et
velata E velada
Michi
quoque niteris; Também a mim
contagias;
Nunc
per ludum Agora por brincadeira
Dorsum
nudum O dorso nu
Fero
tui sceleris. Entrego à tua
perversidade.
Sors
salutis A sorte na saúde
Et
virtutis E virtude
Michi
nunc contraria Agora me é
contrária.
Est
affectus Dá
Et
defectus E tira
Semper
in angaria. Mantendo sempre escravizado
Hac
in hora Nesta hora
Sine
mora Sem demora
Corde
pulsum tangite; Tange a corda
vibrante;
Quod
per sortem Porque a sorte
Sternit
fortem, Abate o forte,
Mecum
omnes plangite! Chorai todos comigo!
Carmina Burana - O Fortuna | Carl Orff - André Rieu
No
século 13, com o surgimento dos burgos, as vilas comerciais, aprofunda-se a crise do mundo medieval. A imposição do Destino determinado
pela Igreja Católica começa a ser questionado. Valores burgueses como a ambição e a vontade entram em cena. O renascimento cultural e econômico, a expansão
marítima e a reforma protestante ampliam as
possibilidades de escolhas, e também, de angústias. Afinal o que é
isso que Lacie procura que é indizível? Que parece não poder ser traduzido em
palavras?
La
Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’Hortus Deliciarum de Herrade de Landsberg.
Paris: Bibliothèque Nationale de
France (Dept. Estampes Ad 144 a)
Finalmente
Lacie chega ao casamento e invade a festa. Toda desarrumada, com seu discurso
pronto, revela um pouco da verdade da sua história, numa espécie de descarga de
palavras misturadas ao choro. São os sentimentos que escapam: “Eu sempre quis ser você. Acho que por isso
você me manteve perto por tanto tempo”. A identificação de Lacie fusionada a amiga impede que seja ela mesma. Mas a constatação da separação
eu – ela permite a Lacie olhar-se de outro lugar. Um passo para nomear e elaborar a semântica de sua
própria condição humana, sua falta e sua "tragédia singular".
Marcelo Tomassini, 30 de outubro de 2016.
Referências:
- Black Mirror, terceira temporada, episódio 1, Nosedive.
- Sigmund Freud, 0 Mal-estar da Civilização (1930) - CIA das Letras.
- Introdução ao Narcisismo (1915) - CIA das Letras.
- Antonio Quinet - Édipo Rei - Zahar.
- Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet - Mito e tragédia na Grécia Antiga - Perspectiva.
- Guy Debord - A sociedade do espetáculo - Contraponto.
Referências:
- Black Mirror, terceira temporada, episódio 1, Nosedive.
- Sigmund Freud, 0 Mal-estar da Civilização (1930) - CIA das Letras.
- Introdução ao Narcisismo (1915) - CIA das Letras.
- Antonio Quinet - Édipo Rei - Zahar.
- Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet - Mito e tragédia na Grécia Antiga - Perspectiva.
- Guy Debord - A sociedade do espetáculo - Contraponto.
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