domingo, 30 de outubro de 2016

O Perdedor ou Sua Majestade, o bebê?

Black Mirror e o além do princípio tecnológico 



           A série inglesa Black Mirror está de volta em sua terceira temporada. Seu primeiro episódio chama-se Nosedive ou “O perdedor” pela Netflix.  Nosedive pode ser traduzido como a queda ou mergulho de um avião de frente ou de nariz (nose dive). Despencar, queda, descida abrupta, palavras associadas à Nosedive.  Já “perdedor” traz os significados de malsucedido e derrotado, segundo o dicionário Caldas Aulete.  

A série Black Mirror é uma distopia aparentemente relacionada a uma crítica do mundo virtual ou como as tecnologias têm influenciado nossas vidas. Desde a máquina a vapor em 1750 na Inglaterra e o surgimento das patentes, o nascente capitalismo industrial associou técnica e ciência (tecnologia), e tornou essencial ao desenvolvimento do capital. 
     
No livro “A Sociedade do espetáculo” (1967), Guy Debord discute como as modernas condições de produção engendram-se em uma acumulação de espetáculos. Nesta acumulação que se apresenta por imagens, a oposição vencedor-perdedor, winner-loser é a tradução da subjetividade contemporânea.

Não estaríamos mais na fase da máquina a vapor, mas em um momento em que “o espetáculo domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente”. É a imagem de vencedores que nos torna vencedores, pois o espetáculo segundo Guy Debord, “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.

A sociedade em Nosedive é organizada por uma forma de reconhecimento quantitativa: uma nota, uma média, na qual cada um administra e que varia em uma escala de 0 a 5. As avaliações representam mais ou menos oportunidades no trabalho, no consumo, nas relações afetivas etc. São o lugar do sucesso ou do fracasso do indivíduo. 

            Dia-a-dia Lacie administra sua imagem (seu ego?), até que em uma cena recebe uma avaliação 4 de uma amiga, o que a faz ficar pensativa. É na nota abaixo do esperado que se abre um sentimento de duplicidade, a comparação e a inveja da amiga e sua própria condição de não perfeição. Um campo contraditório importante para reflexão e associação na clínica. 

Os episódios da série Black Mirror além da tecnologia e do mal-estar, tem uma característica em comum: não há saída. As histórias evidenciam apenas o cinismo generalizado de um tempo em que todos são objetos. Mesmo aqueles personagens que parecem buscar seus desejos e sair da trama que os amarra, como no episódio dois da primeira temporada, Fifteen Million Merits. Nesta história, o personagem Bing, apaixonado por Abi, e furioso com o programa de auditório que os separou, se depara na mesma situação que ela, e acaba por fazer as mesmas escolhas. Entre a dura realidade do cotidiano e o cinismo da fama, escolhe a fama.   

Nosedive quebra um pouco este destino comum dos episódios anteriores. O episódio termina com um grande “Fuck You!” Na cadeia, suja, machucada, no lugar onde a compulsão por reconhecimento lhe trouxe, a personagem solta um grande “foda-se” a tudo e a todos. Pode-se imaginar que nesta situação é fácil; mas não é. E é neste momento que Lacie poderia produzir um lugar para seu desejo. Uma possibilidade de rearticulação da pulsão de vida e de morte. Seria isto uma saída? Só Lacie poderia responder.   

Em uma sociedade mediada por imagens, a sombra da comparação é permanente. Naomi, a amiga de infância de Lacie, representa esta personagem. Ao convidar Lacie para ser dama de honra de seu casamento parece haver alguma autenticidade nas experiências de infância vividas pelas duas. Mas na verdade o cálculo de reconhecimento estava sendo feito por ambas. 

Seu irmão, Ryan, que divide a casa com ela, se coloca neste momento quase como uma voz superegóica de Lacie, avisando que Naomi nunca fora sua amiga e que seu discurso pronto para conseguir aumentar sua avaliação é falso. As histórias de vida dos personagens são empobrecidas, o que destaca a “cultura narcísica” da atualidade.  

Lacie furiosa com o irmão diz que nunca trouxe um homem em casa porque não queria que soubessem que morava com um fracassado. O imaginário da cultura conectou-se ao próprio imaginário de Lacie. Uma casa nova, com um “príncipe encantado”, fora a maneira como a corretora a convenceu de alugar um apartamento e buscar uma empresa de marketing pessoal, “Reputelligent – 5 estrelas” para aumentar sua avaliação.



                                                         Lacie, em Nosedive, Black Mirror.

O narcisismo pensado por Freud em 1915 não é um adjetivo. O narcisismo é um conceito que revoluciona toda a teoria freudiana, pois é fundamental para a constituição de todo sujeito. Neste sentido sua falta é tão prejudicial quanto seu excesso. Toda criança precisa de uma fase de narcisização, para produzir sua própria unidade subjetiva. “Sua majestade, o bebê”, dizia Freud. Mas manter a criança e o adulto em estado superinvestido pode produzir um lugar infantilizado e onipotente como marca subjetiva; de príncipes e princesas que não sabem lidar com sua falta, com o desamparo e a desilusão, próprios da condição humana e da castração. 

É no dialogo com Susan, a caminhoneira, que a questão da falta reaparece. Susan tem nota 1,4, diz que era parecida com Lacie e que já teve nota 4,6. Mas tudo mudou quando seu marido teve câncer. Os médicos atendiam, ela dava nota alta, mas o câncer pouco se importava, e continuou a crescer.  Ao buscar atendimento num hospital com tratamento experimental, ele não foi atendido, sua nota era 4,3 e o hospital exigia 4,4. Depois de sua morte Susan desistiu de querer agradar a todos. Ela passou a dizer o que queria e quando queria. Os amigos e parentes se afastaram.

Lacie e Susan conversam:

- Não posso simplesmente tirar os sapatos e sair caminhando por ai.
- Não vai saber se não tentar.
- É que... Bem você tinha conquistado coisas na sua vida. Coisas reais, coisas boas, e acabou perdendo tudo. Sinto muito. Agora você não tem mais nada a perder. Eu ainda tenho o que perder. Ainda estou lutando para conseguir essa coisa.
- E o que essa coisa é?
- Sei lá... Algo que me deixe feliz? Tipo olhar ao meu redor e pensar que estou bem de vida. Ser capaz de respirar sem me sentir... Meio que... Enfim, falta muito para chegar lá. Até chegar lá, tenho que entrar no joguinho dos números. Todos temos. Estamos atolados nisso. Essa porra desse mundo funciona assim.

Prefiro pensar Nosedive como “A queda”. A palavra queda me remete a uma tradição mais ampla do mundo ocidental. Relaciona-se a própria ideia de "fortuna" (Roma Antiga) ou "tykhe" (Grécia Antiga). Estes conceitos representam o "Acaso", que no mundo antigo se relacionavam às divindades responsáveis pela fortuna e o destino de uma cidade.  

Mas na tragédia grega são os elementos acidentais que carregam a própria condição humana: o saber e o não saber; o dito e o não dito que no mundo moderno se apresentará na própria cisão, fragmentação do homem e sua subjetividade. A modernidade internalizou nosso conflito civilizatório. Pagamos um alto preço pulsional pelos avanços da civilização, já mostrou Freud em O Mal-estar da Civilização (1930).   

Em tragédias gregas como Édipo Rei e Medéia, peças de Sófocles e Eurípedes, o acaso explicita a própria condição humana de lidar com nossas escolhas, nossos desejos e não ter controle sobre suas consequências. Édipo sabe ou não sabe de seu destino: matar o pai e desposar a mãe? Ao responder ao enigma da esfinge com seu próprio nome, “Oidípous” (os pés marcados, os pés inchados) vemos que o acaso, o acidental carrega em Édipo uma marca que Lacan vai denominar como real. É este real que se repete nas escolhas acidentais, casuais em Édipo, e que expressam a nossa própria condição humana e geracional.

Na Idade Média a roda da fortuna foi um símbolo conhecido. Os manuscritos denominados Carmina Burana, textos e poemas produzidos por monges entre os séculos 11 e 13 eternizaram “a fortuna”. Em 1936 o compositor alemão Carl Orff musicou alguns versos destes manuscritos e reverenciou a tradição da fortuna no mundo ocidental. Um trecho da letra e a interpretação da composição que muitos já devem ter ouvido:  


 Em latim                           Em português

O Fortuna,                           Ó Sorte,
Velut Luna                        És como a Lua
Statu variabilis,                    Mutável,
Semper crescis                  Sempre aumentas
Aut decrescis;                      Ou diminuis;
Vita detestabilis                 A detestável vida
Nunc obdurat                        Ora oprime
Et tunc curat                         E ora cura
Ludo mentis aciem,          Para brincar com a mente;
Egestatem,                               Miséria,
Potestatem                                  Poder,
Dissolvit ut glaciem.            Ela os funde como gelo.

Sors immanis                           Sorte imensa
Et inanis,                                   E vazia,
Rota tu volubilis                  Tu, roda volúvel
Status malus,                            És má,
Vana salus                          Vã é a felicidade
Semper dissolubilis,            Sempre dissolúvel,
Obumbrata                                Nebulosa
Et velata                                   E velada
Michi quoque niteris;           Também a mim contagias;
Nunc per ludum                    Agora por brincadeira
Dorsum nudum                       O dorso nu
Fero tui sceleris.               Entrego à tua perversidade.

Sors salutis                              A sorte na saúde
Et virtutis                                   E virtude
Michi nunc contraria            Agora me é contrária.
Est affectus                                  Dá
Et defectus                                  E tira
Semper in angaria.            Mantendo sempre escravizado
Hac in hora                               Nesta hora
Sine mora                                Sem demora
Corde pulsum tangite;         Tange a corda vibrante;
Quod per sortem                      Porque a sorte
Sternit fortem,                        Abate o forte,
Mecum omnes plangite!         Chorai todos comigo!


Carmina Burana - O Fortuna | Carl Orff - André Rieu

No século 13, com o surgimento dos burgos, as vilas comerciais, aprofunda-se a crise do mundo medieval. A imposição do Destino determinado pela Igreja Católica começa a ser questionado. Valores burgueses como a ambição e a vontade entram em cena. O renascimento cultural e econômico, a expansão marítima e a reforma protestante ampliam as possibilidades de escolhas, e também, de angústias. Afinal o que é isso que Lacie procura que é indizível? Que parece não poder ser traduzido em palavras? 

     La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’Hortus Deliciarum  de Herrade de Landsberg.
                                          Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept. Estampes Ad 144 a)


Finalmente Lacie chega ao casamento e invade a festa. Toda desarrumada, com seu discurso pronto, revela um pouco da verdade da sua história, numa espécie de descarga de palavras misturadas ao choro. São os sentimentos que escapam: “Eu sempre quis ser você. Acho que por isso você me manteve perto por tanto tempo”. A identificação de Lacie fusionada a amiga impede que seja ela mesma. Mas a constatação da separação eu – ela permite a Lacie olhar-se de outro lugar. Um passo para nomear e elaborar a semântica de sua própria condição humana, sua falta e sua "tragédia singular". 


                                                                             Marcelo Tomassini, 30 de outubro de 2016.






Referências: 

- Black Mirror, terceira temporada, episódio 1, Nosedive.

- Sigmund Freud, 0 Mal-estar da Civilização (1930) - CIA das Letras.
- Introdução ao Narcisismo (1915) - CIA das Letras.

- Antonio Quinet - Édipo Rei - Zahar.

- Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet - Mito e tragédia na Grécia Antiga - Perspectiva.

- Guy Debord - A sociedade do espetáculo - Contraponto. 

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