“Se podes olhar, vê. Se
podes ver, repara.”
“Ensaio sobre a
cegueira”, Saramago
O
dia 15 de outubro nasceu no Império. Só em 1947 esta data foi instituída como o
dia do professor. Mas é no Império que somos marcados. Para ser exato: em 15 de
outubro de 1827, D. Pedro I decretou a criação de escolas elementares em todas
as cidades e províncias do Brasil. Era preciso inventar uma nação, um país. E a
escola também nasce com esta função. No dia 15 não surge apenas um professor,
mas sua missão civilizatória, uma marca de nosso ideal de eu.
Diz o decreto:
“Art 6º Os Professores
ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de
quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a
grammatica da lingua nacional, e os principios de moral chritã e da doutrina da
religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos
meninos; preferindo para as leituras a Cosntituição do Imperio e a Historia do
Brazil.”
Paulo
Freire dizia que ninguém começa a ser professor num exato momento, mas se faz
professor na prática e na reflexão desta prática. Há um lugar de incompletude
neste movimento, que é próprio do pensamento dialético de Paulo Freire. O
diploma, que nos garante institucionalmente um poder simbólico na cultura, não
nos faz docentes no sentido freireano do termo. Torna-se por vezes um obstáculo a este movimento.
Depois
de doze anos de sala de aula não sei exatamente quando me tornarei professor. E
pouco se fala deste não-lugar no dia 15 de outubro; fala-se da condição do professor genérica, de
um ideal de eu do professor na cultura, atravessado ora pela missão ora pelo
abandono do Estado e da sociedade. É como se tivéssemos um direito social ao
discurso do sofrimento. O 15 de outubro nos marca e nos dá um lugar difícil de
sair.
A
escola vem sendo o centro de muitas polêmicas. Questiona-se o que é ensinado, a
função da escola, sua organização. Do vigiar
ao punir se produzem muitas fantasias do que acontece em sala de aula. A
figura do professor parece não sair da berlinda. As forças políticas desejam retocar
os contornos da nação. A escola, talvez única instituição do Estado que chega a
todas as regiões do Brasil, é constante e repetidas vezes inventada.
Reunião de pais, alunos e professores.
Mas
por que o professor parece estar na berlinda, com todas estas questões
limitantes do trabalho docente? Arrisco-me a dizer que é pela singularidade do
trabalho do professor. E a força da singularidade está na natureza particular
de sua experiência. Na singularidade há sempre algo que escapa, porque envolve
o corpo do professor, seus desejos, aquilo que nos é inconsciente. Envolve as
experiências e expectativas de cada um, marcadas por nossa história. E não há
controle desta transmissão em sala de aula.
Hoje,
muito recentemente para dizer a verdade, penso que é na desconstrução a
possibilidade de me aproximar deste não-lugar do professor. Ou seja, ser professor
é um verbo que está no futuro. É um lugar inalcançável, não como ideal metafísico
ou romântico, mas como ideal da força contraditória do presente, que carrega
variados tempos. Pois a experiência demonstra que quando achamos que chegamos
ao aluno, as situações e circunstâncias nos colocam no não-saber. Na sala de aula não há fórmulas e manuais.
É
comum nas conversas entre professores a afirmação de que faculdade nenhuma no
mundo nos prepara para sermos professores. Esta é uma constatação importante,
relacionada a saúde psíquica do professor. Tendo a acreditar que nosso trabalho
também envolve um nível de lugar do descartável. Ser professor é uma arte de
como nos colocarmos neste lugar do descartável. Como arte é um campo em aberto,
porque envolve a intersubjetividade,
aluno e professor e a intrasubjetividade,
nós com nossos Outros. Do contrário, as distâncias entre expectativas e
experiências nos fazem adoecer.
Freud
dizia que o professor devia se analisar. Estamos diante de uma profissão que
envolve um nível de transferência, de relação inconsciente com os alunos. Eles
nos colocam em lugares, depositam em nós suas paixões, amores e ódios. E nós
neles.
Como
lidar com estas trocas de energia psíquica em um trabalho que envolve um campo
relacionado ao vazio? Nunca sabemos ao certo o quanto tocamos o outro. E quando
tocamos não necessariamente tocamos pelos nossos conhecimentos científicos. A
análise talvez ajude a pensar esta relação, porque na análise temos a
possibilidade de nos descobrirmos como seres cindidos, fragmentados. E é na
análise que a ilusão do discurso do mestre, daquele saber inteiro racional
sobre o outro, do sujeito e do objeto, tem a possibilidade de ser pensada.
Sustentar
o lugar do professor é também sustentar este mal-estar de nossa própria cisão. O
trabalho docente pela força de seu desamparo material e também psíquico nos faz
adoecer. Como suportar a dialética deste lugar, que é próprio da falta? Como
lidar com o desamparo do outro, se não produzimos um saber sobre nosso próprio
desamparo? Um sintoma desta crise é que para se defender psiquicamente, o
professor aliena seu desejo no discurso do Outro, na ilusão que pode se salvar
desta forma. Nos flagelamos e somos flagelados por um supereu da cultura que marca o tipo ideal de professor.
No
livro “Ensaio sobre a Cegueira”, de
Saramago, uma cegueira epidêmica toma conta de toda a cidade. Não
se sabe aonde fica esta cidade, nada é nomeado na obra. O médico, a mulher do
médico, o rapazinho estrábico, o velho da venda preta, a rapariga de olhos
escuros é a forma como Saramago descreve os personagens.
Não
é uma cegueira que deixa todos na escuridão. É uma cegueira branca, um excesso de
luz. A alegoria permite pensar o excesso de olhar e informação que a atualidade produz, mas
que não permite ver. Diante de nossa alienação do trabalho e massificação na
cultura, nosso desafio enquanto professores, talvez por isto o grande incômodo que
ainda provocamos, é o reconhecimento de nossa singularidade em sala de aula,
para que os alunos possam reconhecer sua própria singularidade.
Marcelo Tomassini, 15 de outubro de 2017.
Referências:
Decreto de D. Pedro I
"Ensaio sobre a cegueira", José Saramago. CIA das Letras.