domingo, 17 de dezembro de 2017

Todos os desejos de uma cicatriz

Uma leitura de “Todas as funções de uma cicatriz”, de Lâmia Brito


É preciso escrever para reinventar continuamente a ilusão. Escrever é também, de certo modo, recusar ao pensamento a seriedade dos sistemas e permitir assim a livre circulação dos fantasmas (...) Somente a escrita tem o poder de denunciar o saber e de fazer aflorar no texto a vida pulsional do pensamento (...) A superfície produzida no ato de escrever é a da pele: a escrita é uma zona erógena.

Pierre Fédida

(...) a autêntica fruição da obra literária vem da libertação de tensões em nossa psique. E talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato de que o escritor nos permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e sem pudor.

Sigmund Freud

devemos discordar, de antemão, de textos bem escritos
todo intelectual é uma fraude e todo poeta é estelionatário
os únicos que realmente dizem o que pensam são os rancorosos.

Lâmia Brito


O corpo na atualidade é alvo de um ideal de completude. Nunca se falou tanto do corpo: revistas, televisão, academias, cirurgias plásticas, muitas indústrias e uma infinidade de discursos que coisificam o corpo. Neste ideal não há um sujeito no corpo, apenas o corpo. Como diz Lâmia, “couraça, carcaça” (...) “depois me perguntam porque sou tão calada”.  
  
 Do ideal de completude do corpo que não pode mais envelhecer ou expor suas cicatrizes encontra-se sua total submissão. Quem sabe a mais atual de todas as neuroses, a fonte da juventude. Nunca se viu tantos corpos sem aura.

Os poros fechados, uma “poesia encravada” diz Lâmia, que precisa espremer pra sair, e que ao fim traz consigo um tanto de sangue, e ali um furo, um inchaço, uma pequena cicatriz, uma borda e uma linguagem.  

Pequenas e grandes cicatrizes. O livro de Lâmia Brito é a possibilidade da restauração do lugar psíquico do corpo. É uma literatura do corpo ou talvez melhor: o corpo de uma literatura. E logo na primeira página somos jogados na profundidade desta viagem corporal:

quis saber porque eu tinha tantas cicatrizes. contou uma por uma. quarenta e três. uma por uma, assim, em voz alta, parecia que eram mil. revirou meu corpo para ver se não tinha esquecido nenhuma. talvez tivesse. perguntou como, onde, quando, os motivos. dei risada, não porque era engraçado, mas porque não fazia sentido.




A resistência à submissão do corpo, um encontro com a imagem de seu próprio corpo. Creio que a força da poesia de Todas as funções de uma cicatriz é porque trata de algo muito singular que é na verdade universal. O encontro do corpo com suas histórias, suas temporalidades, suas marcas, equívocos, repetições e descontinuidades.

  
lâmia nasceu vagina
 mas cresceu desapontada
 aceitou a condição
 impossível de mudança.


E é entre poesias que encontro na estética do livro o corpo nu de Lâmia. E é na nudez que todos nós nos encontramos.  A anatomia é o destino até a próxima vírgula.

Nas imagens este corpo sem rosto, só corpo, como se somente este pudesse dar conta do equívoco das palavras, dos encontros e desencontros de suas brincadeiras. Nas imagens do livro um corpo e a fantasia de unicidade; nas palavras uma multiplicidade de corpos. Cada corpo terá que lidar com sua falta, com suas bordas, “descobriu que o prazer e a morte / estavam ao alcance das mãos”.

Corpo em grego é sôma, que para os gregos é um organismo isolado de suas funções psíquicas. Daí o termo somatização. A maneira cartesiana que ainda vemos o corpo, o tal corpo e alma. Na literatura de Lâmia restaura-se o corpo numa unidade contraditória: o corpo psíquico, o imaginário corporal, o corpo contraditoriamente dividido. Ao restaurar psiquicamente o corpo pela poesia, Lâmia o simboliza em palavras, em palavras errantes, equívocas como uma cicatriz.

Encontramos por fim o corpo sem fronteiras prévias. Ele é resultado das palavras que o atravessam em seu fio e fardo geracional. A matéria prima do corpo são histórias e circunstâncias. Não se trata aqui do corpo biológico da medicina, mas o complexo jogo das relações limites entre o psíquico e o somático, no que Freud nomeou como a pulsão.    
  
é tipo quando você come alguma coisa e aquela coisa fica lá no seu estômago horas te estufando e fazendo uns barulhos esquisitos e não querendo sair da ali e te enchendo te irritando te paralisando não te deixando fazer mais nada e aí você pega essa coisa e coloca na sua cabeça e multiplica por mil coisas e faz essas coisas gritarem por socorro peloamordeus socorro querendo urgentemente uma saída porque você tem certeza que tem uma bomba-relógio no seu cérebro tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac que vai explodir a qualquer momento e elas precisam sair de lá por algum lugar e ai você tem que tampar os ouvidos com a pressão de uma panela de pressão porque essas coisas estão gritando é ensurdecedor é vazio e transborda ao mesmo tempo e você não consegue parar pra pensar numa solução e você sabe que as coisas que estão lá vão explodir a qualquer momento e não dá pra pensar não tem como pensar e está escuro por quê tá escuro você queria ter mais mãos pra não ouvir e não ver e você já não sabe mais se é estômago revirado ou cabeça em ponto de aneurisma e sempre vem alguém perguntar o que tá acontecendo se você precisa de ajuda quer uma água senta aqui respira vai passar mas ela não quer saber se você precisa de ajuda ela só quer saber de alguma coisa pra contar na próxima vez que encontrar os amigos dela e então você chora e deita e depois tudo se apaga e termina.

É na clínica que escutei o corpo. “Não consigo falar sobre os meus sentimentos”. Sem palavras o corpo endurecia. Era uma armadura contra tudo e todos. Sempre preparada para uma batalha na qual o grande fardo era não demonstrar a fragilidade do próprio corpo.

No silêncio ela se contorcia como se estivesse para guerrear comigo. Por trás daquela armadura o corpo escapava pelas lágrimas e pelo ódio. Procurou análise porque a armadura já estava pesada.

Foi preciso aprender a falar sobre si, como andar para um bebê. É um trabalho de elaboração doloroso, de muitas quedas, porque é uma travessia que também se faz com o corpo, com as cicatrizes do corpo. Como diz Lâmia, “cada palavra, uma gota de sangue que escorreu. Esta é a função da cicatriz: relembrar”.  


Todo dia um desafio
 todo dia um desafio
 todo dia um desalinho
 toda hora linha tênue
 não sei se alienação
 ou abraço o abismo
 a cada minuto briga interna
 pau a pau com o coração
 toda semana é isso
 hoje o mundo é problema
 amanhã é solução
 todo dia um abismo
 todo dia um abismo
 aponta o pé só pra ver se cai
 será mesmo que não tem chão?
e mesmo que caia
mesmo que do chão não passe
o que era problema vira solução
que vira problema
linha tênue
grande decisão
todo dia um desafio
todo dia um desafio
a cada minuto briga interna
pau a pau com o coração.




Se o corpo narra o que mostra, de que princípio é o corpo? Quais os fantasmas o corpo carrega? A poesia de Lâmia diz que este corpo carrega a ambivalência, o amor e o ódio. A dor e o desprazer são constitutivos deste corpo. E se “a cada minuto uma briga interna” são nas várias funções de uma cicatriz que é possível simbolizar a destrutividade que vêm do interior do sujeito e é demasiadamente humana.  

O abismo está sempre à espreita de todos. E cada qual terá que lidar com os próprios monstros interiores. A felicidade é algo passageiro e transitório, incompleto pelo próprio mal-estar da existência corporal, a finitude e o envelhecimento.

É Nietzsche que nos lembra, antes mesmo de Freud, em Para Além do Bem e do Mal, que “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”.

eu canto pra livrar o peito do mal-estar

(...)

mas foi pela escrita que a gente não se matou.


Todas as funções de uma cicatriz é uma obra que brinca com suas cicatrizes. É nesta brincadeira que se revelam as fantasias do mundo adulto. A força da imaginação que o principio da realidade regula, na poesia se revela.

É nesta brincadeira literária que se apresenta também um grau de resistência e luta pelo desejo, que não é a busca por um objeto específico, mas uma opção de coragem do sujeito por uma viagem em sua própria negatividade.

Não há essência positiva. Haverá sempre uma indeterminação à nossas imagens, representações e papéis sociais. Todas as funções de uma cicatriz, de Lâmia Brito, é poesia que vem nos trazer de volta ao corpo e ao humano. E apesar de se dizer uma obra autobiográfica, sua força se dá porque ela diz muito sobre nosso tempo.  


quase lá...
vivendo todos os séculos de uma vez
 todo o gozo que se fez
 de olhos bem fechados
 nossa prática é a arte lençol adentro.



Marcelo Tomassini, 17 de dezembro de 2017. 

domingo, 15 de outubro de 2017

O dia que me tornarei professor



“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

“Ensaio sobre a cegueira”, Saramago


O dia 15 de outubro nasceu no Império. Só em 1947 esta data foi instituída como o dia do professor. Mas é no Império que somos marcados. Para ser exato: em 15 de outubro de 1827, D. Pedro I decretou a criação de escolas elementares em todas as cidades e províncias do Brasil. Era preciso inventar uma nação, um país. E a escola também nasce com esta função. No dia 15 não surge apenas um professor, mas sua missão civilizatória, uma marca de nosso ideal de eu. 

Diz o decreto: 

“Art 6º Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral chritã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Cosntituição do Imperio e a Historia do Brazil.”


Paulo Freire dizia que ninguém começa a ser professor num exato momento, mas se faz professor na prática e na reflexão desta prática. Há um lugar de incompletude neste movimento, que é próprio do pensamento dialético de Paulo Freire. O diploma, que nos garante institucionalmente um poder simbólico na cultura, não nos faz docentes no sentido freireano do termo. Torna-se por vezes um obstáculo a este movimento. 

Depois de doze anos de sala de aula não sei exatamente quando me tornarei professor. E pouco se fala deste não-lugar no dia 15 de outubro; fala-se da condição do professor genérica, de um ideal de eu do professor na cultura, atravessado ora pela missão ora pelo abandono do Estado e da sociedade. É como se tivéssemos um direito social ao discurso do sofrimento. O 15 de outubro nos marca e nos dá um lugar difícil de sair.   

A escola vem sendo o centro de muitas polêmicas. Questiona-se o que é ensinado, a função da escola, sua organização. Do vigiar ao punir se produzem muitas fantasias do que acontece em sala de aula. A figura do professor parece não sair da berlinda. As forças políticas desejam retocar os contornos da nação. A escola, talvez única instituição do Estado que chega a todas as regiões do Brasil, é constante e repetidas vezes inventada.

Reunião de pais, alunos e professores.  

Mas por que o professor parece estar na berlinda, com todas estas questões limitantes do trabalho docente? Arrisco-me a dizer que é pela singularidade do trabalho do professor. E a força da singularidade está na natureza particular de sua experiência. Na singularidade há sempre algo que escapa, porque envolve o corpo do professor, seus desejos, aquilo que nos é inconsciente. Envolve as experiências e expectativas de cada um, marcadas por nossa história. E não há controle desta transmissão em sala de aula.

Hoje, muito recentemente para dizer a verdade, penso que é na desconstrução a possibilidade de me aproximar deste não-lugar do professor. Ou seja, ser professor é um verbo que está no futuro. É um lugar inalcançável, não como ideal metafísico ou romântico, mas como ideal da força contraditória do presente, que carrega variados tempos. Pois a experiência demonstra que quando achamos que chegamos ao aluno, as situações e circunstâncias nos colocam no não-saber. Na sala de aula não há fórmulas e manuais. 
  
É comum nas conversas entre professores a afirmação de que faculdade nenhuma no mundo nos prepara para sermos professores. Esta é uma constatação importante, relacionada a saúde psíquica do professor. Tendo a acreditar que nosso trabalho também envolve um nível de lugar do descartável. Ser professor é uma arte de como nos colocarmos neste lugar do descartável. Como arte é um campo em aberto, porque envolve a intersubjetividade, aluno e professor e a intrasubjetividade, nós com nossos Outros. Do contrário, as distâncias entre expectativas e experiências nos fazem adoecer.    

Freud dizia que o professor devia se analisar. Estamos diante de uma profissão que envolve um nível de transferência, de relação inconsciente com os alunos. Eles nos colocam em lugares, depositam em nós suas paixões, amores e ódios. E nós neles.

Como lidar com estas trocas de energia psíquica em um trabalho que envolve um campo relacionado ao vazio? Nunca sabemos ao certo o quanto tocamos o outro. E quando tocamos não necessariamente tocamos pelos nossos conhecimentos científicos. A análise talvez ajude a pensar esta relação, porque na análise temos a possibilidade de nos descobrirmos como seres cindidos, fragmentados. E é na análise que a ilusão do discurso do mestre, daquele saber inteiro racional sobre o outro, do sujeito e do objeto, tem a possibilidade de ser pensada.   

Sustentar o lugar do professor é também sustentar este mal-estar de nossa própria cisão. O trabalho docente pela força de seu desamparo material e também psíquico nos faz adoecer. Como suportar a dialética deste lugar, que é próprio da falta? Como lidar com o desamparo do outro, se não produzimos um saber sobre nosso próprio desamparo? Um sintoma desta crise é que para se defender psiquicamente, o professor aliena seu desejo no discurso do Outro, na ilusão que pode se salvar desta forma. Nos flagelamos e somos flagelados por um supereu da cultura que marca o tipo ideal de professor.    

No livro “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, uma cegueira epidêmica toma conta de toda a cidade. Não se sabe aonde fica esta cidade, nada é nomeado na obra. O médico, a mulher do médico, o rapazinho estrábico, o velho da venda preta, a rapariga de olhos escuros é a forma como Saramago descreve os personagens.

Não é uma cegueira que deixa todos na escuridão. É uma cegueira branca, um excesso de luz. A alegoria permite pensar o excesso de olhar e informação que a atualidade produz, mas que não permite ver. Diante de nossa alienação do trabalho e massificação na cultura, nosso desafio enquanto professores, talvez por isto o grande incômodo que ainda provocamos, é o reconhecimento de nossa singularidade em sala de aula, para que os alunos possam reconhecer sua própria singularidade.  


Marcelo Tomassini, 15 de outubro de 2017. 


Referências:

Decreto de D. Pedro I 

"Ensaio sobre a cegueira", José Saramago. CIA das Letras. 







sábado, 26 de agosto de 2017

A cadeia do amor



Adolescentes, estudantes de uma escola organizaram uma brincadeira chamada “cadeia do amor”. A brincadeira da cadeia, popularmente conhecida nas festas juninas, na qual o divertimento é prender os colegas numa cadeia improvisada. O correio elegante, a maça do amor, a pescaria são mais alguns símbolos da festa.  

No entanto, a criatividade dos adolescentes produziu outra versão da brincadeira. E brincar, já dizia Freud, é a possibilidade de colocar em prática, sem censuras, nossos desejos. Natural para adolescentes num momento de descoberta e reconhecimento da sexualidade, da relação com o outro e com seu próprio corpo.

Na nova versão da brincadeira prendiam-se duas pessoas. Para sair se beijariam ou pagariam uma fiança. A princípio uma forma de não se comprometerem totalmente com as consequências do desejo, visto que a dinâmica do jogo se dava pelo pagamento da ficha que alguém faria para prender as pessoas.   

Na escola, a brincadeira guardava muitas reticências e contrariedades de professores e direção. Conta-se que tempos atrás alguns adolescentes teriam passado dos limites. A tal história se constitui como um paradigma moral e torna-se mais simples usá-la para dizer não aos estudantes.

Com regras e normas os adolescentes conseguiram realizar uma experiência de duas horas da brincadeira na festa junina. Mas com o objetivo de que a cadeia do amor virasse algo mais próximo de uma cadeia, típica brincadeira das festas juninas.  

No dia da realização da “cadeia do amor” o que ocorreu revelou mais do que simplesmente o desejo de descoberta da sexualidade por parte dos jovens. Ou melhor, desnudou uma forma de sexualidade, uma forma de amar.



Os adolescentes fizeram uma cabana na qual havia frestas para olharem. Muitos eram carregados contra a vontade, meninas e meninos ficavam constrangidos na cadeia, e estes eram vigiados pelos demais numa cena que lembrava um pequeno espetáculo.

Alguns beijos ocorreram, mas a grande questão não era o beijo em si, mas o ritual que cercava o ato e expressava uma forma de relacionar-se. A cadeia do amor não era mera contradição, “cadeia” e “amor”, mas uma condição. Condição que dizia sobre a vida deles, sobre a cultura do bairro e da própria instituição escolar.

Uma experiência e tanto para pensar a sexualidade na escola, de um ponto de vista ético. Mas a escola, como instituição, pela sua dinâmica, esmaga a subjetividade dos que nela trabalham e estudam. A jornada e as condições de trabalho combinada a formação bacharelesca torna o espaço escolar pouco suscetível ao tempo das reflexões. 

 O esmagamento do espaço escolar se expressa pela circularidade de uma moralidade que norteia suas ações. A moral é uma forma de realizar as coisas, fixa, nada reflexiva e presa a uma tradição. “As coisas são assim porque é o correto!” 

A excessiva saída moral da escola revela que esta abriga em sua essência o conflito. E é no conflito que se encontra a potencialidade para a reflexão. Neste jogo entre a moral e o conflito que surge o mal-estar, a incerteza do desejo do outro e da própria abertura para as possibilidades de pensar.  

Na brincadeira dos adolescentes havia uma forma de amar encadeada, presa à cadeia. Como poderíamos pensar “cadeia” e “amor”, que encadeamento amoroso era este? Seria preciso expandir, ampliar a visão daquele ato.   
       
Em outros momentos, em conversa com os pais, escutava que gostavam da escola porque esta se preocupava com os alunos. Indagava sempre o que era se preocupar? E eles associavam a vigiar. Vigiar tornara-se uma forma de amar, de cuidar. “Eu não deixo meu filho ir à casa do colega, porque eu não confio que ele vai estudar”, escutei mais de uma vez dos pais. Nesta frase há um contraditório amor, como na brincadeira da cadeia do amor.

A dificuldade dos alunos de fazerem trabalhos em grupos fora da escola era resultado do medo dos pais de deixarem as crianças irem à casa dos colegas. Por um lado o medo de abusos sexuais na casa de estranhos, mas também a não confiança que de fato iriam fazer trabalhos. A escola, segundo os pais, deveria criar formas para os filhos se organizarem em grupo fora do horário convencional, vigiados. Uma demanda justa, mas uma demanda de mais cadeia e amor.  

A maneira como os adolescentes organizaram sua forma de amar deu-se através do abuso, abuso do desejo do outro. Carregar, constranger, vigiar tornou-se por fim a forma que encontraram de amar. 

Certa rigidez moral diz o que é da ordem da escola e o que não é como se isto fosse inteiramente possível. O discurso é de que a escola não pode ir “para além do pedagógico”. Esta é uma visão, uma perspectiva do pedagógico que norteia muitas escolas particulares e públicas. “Nos preocupamos com as boas e más notas”, é o discurso que garante o lugar do mestre, do gozo daquele que sabe. 
   
  A cadeia do amor indica a necessidade de pensar novas maneiras de amar, e elas passam por uma forma de cuidar, um cuidado de si.  A cadeia do amor não deixa de evidenciar como o amor se realiza, mas também como nos escapa. Não diz somente sobre a escola, mas sobre o emaranhado que se estabelece na cultura, na escola e na família. Na aposta que fazemos na autonomia dos adolescentes, no mal-estar que isto produz nos adultos no exercício pedagógico de se tornarem “descartáveis”.

Parece que a escola encontra-se neste local de socialização intermediária da casa e de um determinado mundo fora da casa, no “entre”. É neste “entre”, de divisão, abertura, fragmentação, e também de entrada, que se dá a impossibilidade do controle moral absoluto. E tanto mais moralidade, mais manifestações do não-dito, dos sintomas.

 E é deste lugar intermediário, do “entre”, que se vê a potência de um lugar ético, o qual permita ao adolescente se reconhecer e se responsabilizar nas suas escolhas e incertezas. Uma nova forma de cuidar de si e amar. 
  


                            Marcelo Tomassini, 26 de Agosto de 2017.  


quinta-feira, 30 de março de 2017

A palavra sem tempo

                 


“A filosofia, em sua função histórica, é essa extração, essa traição, eu quase diria, do saber do escravo, para obter sua transmutação em saber do senhor.”
Jacques Lacan


Cena 1

Osvaldo entra na padaria. Atrás do balcão, Maria, uma funcionária, conversa com outra que varre o chão:

- Não pode, vê se pode! Ela disse para mim que minha obrigação é sorrir enquanto a atendo.

- Humm...

Não sou obrigada a sorrir! Farei apenas o meu trabalho!

- É...

Neste tempo Osvaldo está ali apenas escutando. Não pede nada, curioso e intrigado pela história.

De repente ela olha para ele, o que produz um breve silêncio entre olhares. Dois ou três longos segundos de silêncio!

Maria ri uma risada larga e diz:

- Você ficou em silêncio escutando sem pedir nada?!

Osvaldo respondeu quase como um soluço:

- E você sorriu!

- É! (continua sorrindo).

Osvaldo pede os pães, agradece e vai embora.




Cena 2:

Em um dos momentos altos da narrativa, Gregor Samsa, personagem de Kafka, na Metamorfose, transformado em inseto, se fecha no quarto enquanto seus pais chamam seu chefe para retirá-lo de lá. Sua irmã Grete está entre a sala e o quarto de Gregor. Assim Kafka descreve a cena:

- Entenderam uma única palavra?  - perguntou o gerente aos pais. – Será que ele não nos está fazendo de bobos?

- Pelo amor de Deus! – exclamou a mãe já em lágrimas. – Talvez ele esteja seriamente doente e nós o atormentamos. Grete! Grete! – gritou então.

- Mamãe? – bradou a irmã do outro lado.

Elas se comunicavam através do quarto de Gregor.

- Você precisa ir imediatamente ao médico. Gregor está doente. Vá correndo ao médico. Você ouviu Gregor falar, agora? 

- Era uma voz de animal – disse o gerente, em voz sensivelmente mais baixa, comparada com os gritos da mãe.

Cena 3:




O inferno, 1510-1520 pintor português desconhecido.


Todos queriam ir para o céu no Auto da Barca do Inferno, mas seus pecados o empurravam para o inferno, para o deleite do diabo.  Ao tentar entrar na barca do anjo, o Corregedor diz:

Ó arrais dos gloriosos,

Passai-nos neste batel!

O Anjo:

Ó pragas pera papel,

Pera as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

Sendo filhos da ciência!

Corregedor:

Oh Habeatis clemência

E passai-nos como vossos!

Joane

Hou homens dos breviários,

Rapinastis coelhorum

Et pernis perdiguitorum

E mijais nos campanairos!

Joane (ou o Parvo) é um dos poucos não condenados pelo diabo. Apesar de seus pecados, chega desprovido de tudo, sem malícia. É uma alma pura, cujos valores são legítimos e sinceros. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Então, por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.

É Joane quem ajuda o Anjo a denunciar o Corregedor. Chamado de "praga do papel” pelo Anjo, Joane complementa referindo-se ao Corregedor como o homem dos “breviários”, dos manuais, ironia com quem segue livros e não a consciência, e critica também o uso mecânico das normas burocráticas.

Cena 4:   

Com muito custo o comando de greve entra na escola. Intervalo dos professores. Já dura duas semanas a greve. Uma altiva professora pede a palavra. Discursa sobre os motivos da greve.

Os minutos do intervalo correm... Os pensamentos dos professores que ouvem também. A professora Helena se incomoda com o comando de greve, mas não fala nada. Pensa consigo mesmo que eles não sabem sobre sua vida, não sabem o que ela sofre. Mas lhe vem à cabeça que ela também não sabe nada sobre aquela mulher, nem seu nome recorda... Olha o relógio e pensa: “poucos minutos de intervalo e ainda tem que aguentar este pessoal”. 

Nos momentos finais de sua fala a altiva professora diz:

- Colegas professores, por isto tudo precisamos aderir à greve e a paralisação. Eles não podem nos calar! O que acham?

Um vazio toma a sala. De alguma forma o co-mando pedia que todos se posicionassem. Naquele silêncio havia o mesmo peso de mando das palavras da altiva professora. De alguma forma aqueles professores ali sentados conseguiram, em meio à crise educacional, a ilusão de que seu mal-estar subjetivo era menos pior se mantendo no trabalho.  

Em meio ao silêncio, o “não podemos nos calar” ressoava na cabeça de Helena, e ela diz o que o discurso da altiva professora queria escutar: 

Se todos forem eu também vou, mas só no dia da paralisação!

Helena ocupa o lugar de Joane (ou Parvo), personagem do Auto da Barca do Inferno, e deseja garantir seu lugar no céu pela inocência. “Se todos forem não serei culpada sozinha, ou não precisarei assumir minha responsabilidade”, pensa Helena. Um traço do mundo privado, da Casa na cultura brasileira, faz os verdadeiros pecadores serem aqueles que desejam ocupar os espaços públicos. Eles estão ali na frente de Joane e de Helena, e estes merecerão a barca do inferno, certamente. 




Magritte, O terapeuta, 1936.


Palavras podem produzir um discurso, mas nem todos os discursos carregam palavras. Palavras tem a força de produzirem laços. Discursos muitas vezes produzem relações entre senhores e escravos.

Os tempos indicam que até o humor nos roubam. Não basta mais o resultado do trabalho, é preciso uma forma de ser no trabalho. Maria não quer dar para qualquer um seus sorrisos. Deseja que seu humor lhe seja singular.

 Freud já dizia que “o humor não é resignado, é rebelde, ele significa não apenas o triunfo do Eu, mas também do princípio do prazer, que nele consegue afirmar-se, contra a adversidade das circunstâncias reais”. Sorrir é resistir às circunstâncias da vida, seu mal-estar.  

Osvaldo escutou Maria, e ganhou um largo sorriso. Quem escuta Maria? Querem apenas que ela sorria, um sorriso que não é seu. O humor é uma marca de Gil Vicente. Homem da corte, que produziu mais de 40 peças encomendadas, e fez do Auto da Barca do Inferno uma sátira social na qual os personagens um a um eram desmascarados pela hipocrisia pela qual levavam suas vidas e pelos seus contraditórios ideais religiosos.

Gil Vicente consciente ou inconscientemente criticava os discursos que assujeitavam. O corregedor era um burocrata do papel e da ciência. Seu discurso era o que Lacan chamava de discurso do mestre, na qual há um senhor e um escravo. Portanto não era apenas o produto ou a atividade do trabalho que era expropriada, no que Marx chamava de mais-valia, mas o próprio discurso, uma forma de saber que marcou a tradição ocidental, e se faz como um mais-gozar do senhor.  

E é na Metamorfose que vemos os pais de Gregor Samsa chamarem o médico e o chefe. Ambos, médico e chefe, possuem o direito de gozar do discurso, de nomear e classificar o outro. Talvez se a Metamorfose fosse produzida hoje, Gregor seria diagnosticado com Síndrome de Burnout ou depressão. Nossa cultura ocidental acostumou-se a um lugar no sofrimento, um lugar de escravo. 

Quando Gregor vira um imenso inseto, a primeira coisa que se dá conta é a perda da voz e da palavra. Se (re)descobre no seu corpo de inseto como um ser que não tem direito a fala. Seu chefe aproxima-se do quarto e diz: “Entenderam o que ele fala?” e afirma quando o ouve: “Era uma voz de animal!”.

Assim como a mais-valia, o mais-gozar do discurso se renova. Adquire tons de conhecer profundo. Como diz Lacan, a palavra episteme significa “colocar-se em boa posição”. “Trata-se de encontrar a posição que permita que o saber se torne um saber de senhor”. 

E assim no mundo do trabalho, da ciência, da burocracia, das universidades, do capitalismo, da esquerda, da direita há um traço do discurso que tenta apagar qualquer forma de singularidade. Porque a singularidade carrega um traço político decisivo, ela nos remete ao espelho de nossa própria singularidade. Trata-se da política no sentido mais radical.

                   
                      Marcelo Tomassini, 30 de março de 2017 


Referências:

Lacan, O avesso da psicanálise – Zahar

Kafka, A Metamorfose – CIA das Letras

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, Atelie Editorial

S. Freud, O humor – Cia das Letras.