Uma leitura de “Todas as funções de uma cicatriz”, de Lâmia Brito
É preciso escrever
para reinventar continuamente a ilusão. Escrever é também, de certo modo,
recusar ao pensamento a seriedade dos sistemas e permitir assim a livre
circulação dos fantasmas (...) Somente a escrita tem o poder de denunciar o
saber e de fazer aflorar no texto a vida pulsional do pensamento (...) A
superfície produzida no ato de escrever é a da pele: a escrita é uma zona
erógena.
Pierre Fédida
(...) a autêntica
fruição da obra literária vem da libertação de tensões em nossa psique. E
talvez contribua para isso, em não pequena medida, o fato de que o escritor nos
permite desfrutar nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e sem pudor.
Sigmund Freud
devemos discordar, de
antemão, de textos bem escritos
todo intelectual é
uma fraude e todo poeta é estelionatário
os únicos que
realmente dizem o que pensam são os rancorosos.
Lâmia Brito
O
corpo na atualidade é alvo de um ideal de completude. Nunca se falou tanto do
corpo: revistas, televisão, academias, cirurgias plásticas, muitas indústrias e
uma infinidade de discursos que coisificam o corpo. Neste ideal não há um
sujeito no corpo, apenas o corpo. Como diz Lâmia, “couraça, carcaça” (...) “depois me perguntam porque sou tão calada”.
Do ideal de completude do corpo que não pode
mais envelhecer ou expor suas cicatrizes encontra-se sua total submissão. Quem
sabe a mais atual de todas as neuroses, a fonte da juventude. Nunca se viu
tantos corpos sem aura.
Os
poros fechados, uma “poesia encravada” diz Lâmia, que precisa espremer pra
sair, e que ao fim traz consigo um tanto de sangue, e ali um furo, um inchaço,
uma pequena cicatriz, uma borda e uma linguagem.
Pequenas
e grandes cicatrizes. O livro de Lâmia Brito é a possibilidade da restauração
do lugar psíquico do corpo. É uma literatura do corpo ou talvez melhor: o corpo
de uma literatura. E logo na primeira página somos jogados na profundidade
desta viagem corporal:
quis
saber porque eu tinha tantas cicatrizes. contou uma por uma. quarenta e três. uma
por uma, assim, em voz alta, parecia que eram mil. revirou meu corpo para ver
se não tinha esquecido nenhuma. talvez tivesse. perguntou como, onde, quando,
os motivos. dei risada, não porque era engraçado, mas porque não fazia sentido.
A
resistência à submissão do corpo, um encontro com a imagem de seu próprio
corpo. Creio que a força da poesia de Todas
as funções de uma cicatriz é porque trata de algo muito singular que é na
verdade universal. O encontro do corpo com suas histórias, suas temporalidades,
suas marcas, equívocos, repetições e descontinuidades.
lâmia nasceu vagina
mas cresceu desapontada
aceitou a condição
impossível de mudança.
E é
entre poesias que encontro na estética do livro o corpo nu de Lâmia. E é na
nudez que todos nós nos encontramos. A
anatomia é o destino até a próxima vírgula.
Nas
imagens este corpo sem rosto, só corpo, como se somente este pudesse dar conta
do equívoco das palavras, dos encontros e desencontros de suas brincadeiras. Nas
imagens do livro um corpo e a fantasia de unicidade; nas palavras uma
multiplicidade de corpos. Cada corpo terá que lidar com sua falta, com suas
bordas, “descobriu que o prazer e a morte
/ estavam ao alcance das mãos”.
Corpo
em grego é sôma, que para os gregos é
um organismo isolado de suas funções psíquicas. Daí o termo somatização. A
maneira cartesiana que ainda vemos o corpo, o tal corpo e alma. Na
literatura de Lâmia restaura-se o corpo numa unidade contraditória: o corpo psíquico, o
imaginário corporal, o corpo contraditoriamente dividido. Ao restaurar psiquicamente o corpo pela
poesia, Lâmia o simboliza em palavras, em palavras errantes, equívocas como uma
cicatriz.
Encontramos
por fim o corpo sem fronteiras prévias. Ele é resultado das palavras que o
atravessam em seu fio e fardo geracional. A matéria prima do corpo são
histórias e circunstâncias. Não se trata aqui do corpo biológico da medicina,
mas o complexo jogo das relações limites entre o psíquico e o somático, no que Freud
nomeou como a pulsão.
é
tipo quando você come alguma coisa e aquela coisa fica lá no seu estômago horas
te estufando e fazendo uns barulhos esquisitos e não querendo sair da ali e te
enchendo te irritando te paralisando não te deixando fazer mais nada e aí você
pega essa coisa e coloca na sua cabeça e multiplica por mil coisas e faz essas
coisas gritarem por socorro peloamordeus socorro querendo urgentemente uma
saída porque você tem certeza que tem uma bomba-relógio no seu cérebro
tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac que vai explodir a qualquer momento e elas
precisam sair de lá por algum lugar e ai você tem que tampar os ouvidos com a
pressão de uma panela de pressão porque essas coisas estão gritando é
ensurdecedor é vazio e transborda ao mesmo tempo e você não consegue parar pra
pensar numa solução e você sabe que as coisas que estão lá vão explodir a
qualquer momento e não dá pra pensar não tem como pensar e está escuro por quê
tá escuro você queria ter mais mãos pra não ouvir e não ver e você já não sabe
mais se é estômago revirado ou cabeça em ponto de aneurisma e sempre vem alguém
perguntar o que tá acontecendo se você precisa de ajuda quer uma água senta
aqui respira vai passar mas ela não quer saber se você precisa de ajuda ela só
quer saber de alguma coisa pra contar na próxima vez que encontrar os amigos
dela e então você chora e deita e depois tudo se apaga e termina.
É na
clínica que escutei o corpo. “Não consigo falar sobre os meus sentimentos”. Sem
palavras o corpo endurecia. Era uma armadura contra tudo e todos. Sempre
preparada para uma batalha na qual o grande fardo era não demonstrar a fragilidade do próprio corpo.
No
silêncio ela se contorcia como se estivesse para guerrear comigo. Por trás
daquela armadura o corpo escapava pelas lágrimas e pelo ódio. Procurou análise
porque a armadura já estava pesada.
Foi
preciso aprender a falar sobre si, como andar para um bebê. É um trabalho de
elaboração doloroso, de muitas quedas, porque é uma travessia que também se faz
com o corpo, com as cicatrizes do corpo. Como diz Lâmia, “cada palavra, uma gota de sangue que escorreu. Esta é a função da
cicatriz: relembrar”.
Todo dia um desafio
todo dia um desafio
todo dia um desalinho
toda hora linha tênue
não sei se alienação
ou abraço o abismo
a
cada minuto briga interna
pau a pau com o coração
toda semana é isso
hoje o mundo é problema
amanhã é solução
todo dia um abismo
todo dia um abismo
aponta o pé só pra ver se cai
será mesmo que não tem chão?
e mesmo que caia
mesmo que do chão não passe
o que era problema vira solução
que vira problema
linha tênue
grande decisão
todo dia um desafio
todo dia um desafio
a cada minuto briga interna
pau a pau com o coração.
Se o
corpo narra o que mostra, de que princípio é o corpo? Quais os fantasmas o
corpo carrega? A poesia de Lâmia diz que este corpo carrega a ambivalência,
o amor e o ódio. A dor e o desprazer são constitutivos deste corpo. E se “a cada minuto uma briga interna” são
nas várias funções de uma cicatriz que é possível simbolizar a destrutividade
que vêm do interior do sujeito e é demasiadamente humana.
O
abismo está sempre à espreita de todos. E cada qual terá que lidar com os
próprios monstros interiores. A felicidade é algo passageiro e transitório,
incompleto pelo próprio mal-estar da existência corporal, a finitude e o
envelhecimento.
É Nietzsche
que nos lembra, antes mesmo de Freud, em Para
Além do Bem e do Mal, que “aquele que luta com monstros deve acautelar-se
para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo,
o abismo olha para você”.
eu canto pra livrar o peito do mal-estar
(...)
mas foi pela escrita que a gente não se
matou.
Todas
as funções de uma cicatriz é uma obra que brinca com suas cicatrizes. É nesta
brincadeira que se revelam as fantasias do mundo adulto. A força
da imaginação que o principio da realidade regula, na poesia se revela.
É
nesta brincadeira literária que se apresenta também um grau de resistência e
luta pelo desejo, que não é a busca por um objeto específico, mas uma opção de coragem do
sujeito por uma viagem em sua própria negatividade.
Não
há essência positiva. Haverá sempre uma indeterminação à nossas imagens,
representações e papéis sociais. Todas as
funções de uma cicatriz, de Lâmia Brito, é poesia que vem nos
trazer de volta ao corpo e ao humano. E apesar de se dizer uma obra autobiográfica, sua força se dá porque ela diz muito sobre nosso tempo.
quase
lá...
vivendo
todos os séculos de uma vez
todo o gozo que se fez
de olhos bem fechados
nossa prática é a arte lençol adentro.
Marcelo
Tomassini, 17 de dezembro de 2017.
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