sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O inevitável e o impossível




“Todas as revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis.”

Trotsky




A primeira vez que atendi num hospital psiquiátrico veio um frio na barriga. Ao pegar a chave na recepção a atendente disse: “boa sorte!” Duas portas de ferro e dois andares de escada separavam a ala que atenderia. Ao abrir a segunda porta dou de cara com uma fila: era para tomar o remédio.  Logo vejo o paciente, o cumprimento na fila e digo que vou dar uma caminhada pelo local. 

 Um espaço com corredores cheio de quartos, com uma pequena área verde onde se localiza uma quadra. Nos primeiros passos sou parado por um rapaz que pergunta quem sou. Digo meu nome e me apresento como psicanalista. Diz que já fez análise e mostra umas marcas no braço: “sabe como é né, tentativa de suicídio”. Sigo adiante outro rapaz me aborda (é uma ala masculina), perguntando como poderia fazer terapia. Parecia bem dopado de remédios. Explico que a instituição que encaminhava e era preciso falar com o responsável do setor de psicologia.

Consigo andar alguns passos e vou à área verde. Lá um senhor puxa assunto comigo e pergunta se havia chego naquela hora. Achava que eu era um paciente do hospital. De fato, tirando os médicos com avental branco e os enfermeiros com uniforme verde, eu estava vestido como eles, calça jeans e camiseta. Isto me dava um lugar ambíguo, diferenciado para os profissionais que ali estavam e indiferenciado para os pacientes.

Quando sai dali um enfermeiro perguntou: “tomou seu remédio?” Lembro-me só de colocar a mão no bolso para saber se ainda ali se encontrava a chave que a atendente havia me dado. Uma fantasia de ficar preso naquele lugar passou de relance na minha cabeça.  Na verdade com o tempo percebi o quanto tratei minhas próprias loucuras ali.  

Sempre pensei que para me tornar um psicanalista deveria fazer uma experiência num hospital psiquiátrico. Era preciso chegar a radicalidade da clínica e da condição humana, e a radicalidade só poderia ser a crise que levaria a uma internação. Em especial queria atender pacientes psicóticos, esquizofrênicos. A própria ideia de hospital psiquiátrico remetia a uma tradição na história da modernidade que representa uma linha tênue entre a barbárie e a civilização.

Recentemente o livro o “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex relata as internações forçadas num hospital psiquiátrico em Barbacena, Minas Gerais, nas décadas de 60 e 70. Pessoas eram internadas a força sem diagnóstico, sem cuidado, muitas vezes mulheres com condutas fora do “padrão aceito”, homossexuais, negros.  O livro é uma denúncia que se junta a várias outras pelo mundo. Uma série de movimentos sociais surgiram na década de 70 e 80 e marcaram o que ficou conhecido como luta antimanicomial. A defesa de uma reforma psiquiátrica que atendesse e respeitasse a dignidade e o sofrimento humano.

No hospital fui recebendo pacientes, com neuroses graves, dependentes químicos, esquizofrênicos e fui me habituando aquele lugar. Os dias de atendimento foram passando e as rotinas sendo criadas. Aquele espaço estranho e inquietante foi se humanizando à medida que meu imaginário e minha idealização diminuía. Aquelas pessoas internadas tem histórias. E meu trabalho era escutá-las. Com o tempo descobri que a radicalidade da clínica tem a ver mais comigo do que com o outro. Da nossa capacidade em lidar com a angústia do trabalho de escutar. 

               Mais uma versão do clássico “Drácula” (1958), de Bram Stoker.

Quando recebi o primeiro paciente com o diagnóstico de esquizofrenia entendi que ali estava uma forma subjetiva muito singular. E escutar aquela forma de ser no mundo colocava em questão a minha própria existência, minha impotência. Às vezes o que se pode fazer é estar lá, ao lado, em silêncio. E aprendi que isso não é pouca coisa. 

É o que nos remete a clínica a todo momento, aos nossos limites. O trabalho analítico e de atendimento é também elaborar o lugar do nosso narcisismo, de não saber até onde chegam nossas palavras.

    A modernidade produziu uma fantasia de que é possível controlar a natureza, o lixo, a produção, o lazer, o trabalho, o consumo, a educação, diagnósticos, notas, avaliações etc... Mas no meio de tudo isso tem o humano e sua falta, seus desejos, seu desamparo e suas pulsões, aquilo que nos marca e nos movimenta, que provoca encontros, desencontros e finitudes, pequenas mortes, traumas, compulsões.

Trotsky, o revolucionário russo, evidenciava que por trás deste controle do capitalismo existe uma força contraditória que movimenta as classes, os indivíduos, a política, o social, a cultura e produz crises e lutas sociais. Esta força é o resultado da disputa entre o capital e o trabalho.  Como se no capitalismo também existisse algo da ordem do inconsciente que não está sob o controle do conhecimento, da consciência.    

As crises na história, em especial a de 2008, demonstraram que “as agências de risco” (que nome!) produziram uma ilusão de uma estabilidade e segurança econômica quando de repente todo o sistema desmoronou. A maior crise do capitalismo! O impossível e o inevitável tão distantes e tão próximos.

            Deleuze trata a esquizofrenia como uma forma subjetiva revolucionária visto que não se enquadra nesta obsessiva ordem capitalista, nem na vida edípica somente. O delírio é social, diz Deleuze. Já Freud dizia que analisar, educar e governar representam as profissões impossíveis. O impossível é justamente não poder controlar o desejo do outro. Na educação posso dizer que há algo que escapa, por mais métodos pedagógicos que nos especializemos.

O corpo e a palavra são regidos pelo inconsciente, marca singular de cada individuo. A angústia docente parece ser o de não saber ao certo aonde chegam suas palavras para os alunos. Saber que seu saber não é completo ou não completa o outro adoece muitos professores, adoece a escola. Talvez esta experiência no hospital tenha feito refletir sobre  a escola e a tese freudo-trotskista do impossível e inevitável, pois percebi através do meu próprio desamparo, que só se aprende no hospital e na escola quando nos permitimos o lugar do não saber. 

Certa vez o paciente que atendia com diagnóstico de esquizofrenia dizia que queria estudar a esquizofrenia. Achava que podia ajudar na busca da cura. Dizia-me que em todas as civilizações na história haviam delírios como dos vampiros, do Drácula. E que por um tempo havia comido alho e se sentira melhor. Este senhor até então visto como doente se coloca na história das civilizações e porque não produz uma simbolização de sua própria história. Termina nossa conversa dizendo que a cura é conviver com a esquizofrenia. Mas esta não é a cura e o desafio para todos nós: conviver e realizar a (im)potência daquilo que somos?   


                
Marcelo Tomassini, 16 de novembro de 2018. 

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