No
desenvolvimento da psicanálise, Freud foi observando que entre ele e o paciente
era produzido um vínculo muito particular. A escuta liberaria forças psíquicas
contraditórias de libido, agressividade, eróticas, inconscientes que eram projetadas
no analista. Neste vínculo chamado de transferência havia uma tendência que os
sintomas infantis do paciente se repetissem no espaço analítico, a neurose de transferência. Caberia ao analista
manejar a transferência na possibilidade de transformá-la em potencialidades de
escuta e tratamento das neuroses.
A transferência
foi discutida como um importante e decisivo conceito ao longo da história da
psicanálise. Da transferência a contratransferência, a transferência negativa,
a possibilidade de haver ou não transferência abriam debates teóricos e clínicos que tentavam se ajustar a variedade de pacientes e sintomas que representavam uma temporalidade histórica dos fenômenos sociais, os quais engendravam uma perspectiva de "saúde mental" e uma determinada subjetividade.
Algum
tempo atrás atendi um paciente num hospital psiquiátrico que me provocou
profundo mal-estar transferencial. Com o tempo percebi que sua transferência
era tão pesada que me sentia atacado em qualquer ato de resistência de sua parte.
Seu histórico era de acumular coisas, lixos e inclusive pessoas que tentavam
trata-lo. Psiquiatras e outros profissionais de saúde desistiam do tratamento e
viravam parte do seu acúmulo.
Um muro deste acúmulo de material psíquico nos
separava. Um cansaço e uma desesperança de chegar no psiquismo deste paciente
me ensinaram muito sobre os meus limites e a minha própria loucura. O paciente
de alguma forma erguia a tampa do meu próprio recalque e nos fusionávamos pela
loucura. A transferência era enlouquecedora. Com o tempo percebi que a única
forma de trata-lo era me tratar, para sustentar o mal-estar de nossa relação transferencial.
A transferência
produz uma ligação e é desta ligação que também é amorosa que o trabalho analítico
pode se dar. A psicanálise é uma cura pelo amor. O amor transferencial. A transferência não se dá somente no trabalho analítico, talvez a
psicanálise seja o único saber a se preocupar com este fenômeno de modo
fundamental em sua teoria. A transferência como vínculo está em todas as partes.
Na educação, Freud discutiu como determinados deslocamentos de figuras maternas
e paternas, eram transferidas para os professores. E isto parece cada vez mais decisivo
para compreender o interesse ou desinteresse dos alunos pela aprendizagem.
Quantas
situações de projeções transferenciais temos que lidar no trabalho, na família,
nas amizades e agora nas redes de comunicação social. Enfim, a transferência se
realiza porque a realidade psíquica diz respeito a história de cada um de nós. Sob
quais lentes se projeta no outro nosso próprio inconsciente? Winnicott chegou a
dizer que a saúde psíquica estaria relacionada a nossa capacidade de dissolver
estas projeções e poder vivenciar de modo mais criativo, leve e verdadeiro
nossas relações interpessoais.
E quando
pensamos a atualidade do momento histórico nos deparamos em nossos consultórios
com os laços entre pessoas da mesma família ou de amizade que se romperam em nome
da atualidade política. Experiências da conjuntura social intensificam as relações
interpessoais. Como se o social potencializasse as projeções psíquicas. Aquele
com pensamento contrário ao meu estimula os impulsos vindos do inconsciente. É
como se a energia viesse de fora e de dentro e rendesse ao mesmo tempo que estimula o ego a superar suas fragilidades. Só resta ao ego
assumir aqueles impulsos se quiser sobreviver. Ao assumir estes impulsos não
precisa mais se defender, mas atacar. O ego vira um superego e então aparece
revigorado, empoderado pelos impulsos inconscientes e externos.
Há alguns meses discuti com um amigo de infância que produziu uma forte impressão em mim.
Estávamos conversando sobre os rumos da pandemia no Brasil e no mundo. Ele é autônomo
e descreveu toda sua raiva da situação atual. No que eu tentava ponderar fazendo
um esforço para constituir algum vínculo nas possibilidades de refletir algo
que nos atravessaríamos. Era impossível, sentia que era alvo de todas as
projeções de agressividades.
Disse-me
que queria bancar o letrado e que meus textos eram muito grandes. "Quero minha liberdade
produtiva de trabalhar!”, dizia-me. Não era uma conversa, eram monólogos a dois. Este diálogo no fim me produziu um mal-estar que
foi carregado de uma relação transferencial: era um amigo de infância nas quais memórias comuns puderam ser marcadas e atualizadas como traços simbólicos violentos que nos
regrediram. Aliás nestes tempos de política à flor da pele, as
amizades da infância tentam nos resgatar deste lugar que não encontra mais
identidade numa imagem estática da infância. Como se tivéssemos perdidos e caberia a
estes amigos ou mesmo familiares nos salvarem. Ironicamente é o máximo de amor próprio transferencial que podem nos dar.
Diante
da intensidade histórica que estamos vivendo, confesso que duas expressões vêm à
cabeça nestes tempos, acredito que resultado das minhas ambivalências
serem cotidianamente estimuladas por estes restos diurnos da conjuntura
enlouquecedora em que nos encontramos. Ainda não sonhei ter saído sem máscara
na rua simbolizando minha nudez e desamparo. Mas a primeira expressão que penso
ora ou outra é "cuidado para não se atolar no seu imaginário!"
E esta
palavra "imaginário" no Brasil tem tantas sobredeterminações que só
podem ser pensadas condensadas. Todas aquelas imagens sobrepostas que embaçam o
significado e são compreendidas por associação... livre. Como sofremos todos de
Brasil acentuado pelo momento da crise sanitária, econômica e política, nosso inconsciente
sem a necessária censura do aparelho psíquico intensifica pobremente num duplo
de condensação: do lugar de onde seus pés pisam socialmente e das identificações primárias.
É como se estes restos diurnos não fossem quaisquer restos. São da
ordem do transbordamento do trauma social e vão estimular os traços mnêmicos mais
primitivos e materiais da nossa existência, a nossa própria condição de nudez socio-psíquica.
Por
outro lado, algum aspecto das minhas ambivalências, quando provocadas fazem
pensar que "ninguém é só Isso!" Este talvez seja o mais difícil dos
exercícios transferências da atualidade. É quando aquele paciente repete
cronologicamente sua condição de modo impenetrável. Não há furo! E você pacientemente
pensa e espera: “ninguém é só Isso!”
Esta
transferência enlouquecedora em que estamos no Brasil nos coloca o desafio de
nos tratar para cuidar do outro. Ao mesmo tempo que sou levado para o mais
primitivo do meu imaginário (material e psíquico) sou tomado pela visão de que
o outro não é só aquilo que se apresenta. É como se o outro se apresentasse em
manifesto e não no manifesto. No manifesto há uma dimensão latente; em manifesto
há uma ilusão de unidade e completude. Estas duas esferas devem se integrar
para trazermos também uma dimensão onírica de desejo para as lutas.
Marcelo Tomassini, 16 de junho de 2020.
Acho que a necessidade de procurar aquilo que nos é comum ou o que nos atravessa conjuntamente é uma maneira sempre de não produzir sofrimento e as vezes não encarar o óbvio. Um amigo de infância além da própria memória de infância, muitas vezes não há o que compartilhar. A não ser risadas temporâneas, em torno de um passado comum. As experiências compartilhadas das memórias estão em outro simulacro: antes eram nos encontros fortuitos, agora sobrevivem e encenadas pelo vínculo que as redes sociais criaram como imperativo. Não é apenas a memória do passado que os atravessam hoje, mas pensar que a pessoa talvez seja um babaca também. É engraçado que quando pensamos os vários rompimentos com o passado ou com amigos que nos foram tão caros, elas quase que se naturalizaram. Amenizava um pouco a dor de saber que como aquelas memórias não voltam, o símbolo delas que é a manutenção de uma amizade mesmo que distante, poderia se manter ou não. O rompimento não foi encenado. Mas como sustentar que para além daquele passado é o presente que continua nos atravessando? Houve a produção de um rompimento catártico em uma situação que não teria mais acordo, revelando que havia projeção de ambos lados ali, talvez por isso a dor. Será que você só sente dor quando você sentiu gozo? A mesma ideia do amor e ódio? Algumas amizades nos produzem muito prazer e essa dimensão transferencial é importante. Ao ser atravessado por questões do presente, mesmo que ainda possa subsistir a memória compartilhada do passado, esse rompimento produz ainda mais dor.
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