terça-feira, 16 de junho de 2020

Brasil: uma transferência enlouquecedora.


 

No desenvolvimento da psicanálise, Freud foi observando que entre ele e o paciente era produzido um vínculo muito particular. A escuta liberaria forças psíquicas contraditórias de libido, agressividade, eróticas, inconscientes que eram projetadas no analista. Neste vínculo chamado de transferência havia uma tendência que os sintomas infantis do paciente se repetissem no espaço analítico, a neurose de transferência. Caberia ao analista manejar a transferência na possibilidade de transformá-la em potencialidades de escuta e tratamento das neuroses.

A transferência foi discutida como um importante e decisivo conceito ao longo da história da psicanálise. Da transferência a contratransferência, a transferência negativa, a possibilidade de haver ou não transferência abriam debates teóricos e clínicos que tentavam se ajustar a variedade de pacientes e sintomas que representavam uma temporalidade histórica dos fenômenos sociais, os quais engendravam uma perspectiva de "saúde mental" e uma determinada subjetividade.

Algum tempo atrás atendi um paciente num hospital psiquiátrico que me provocou profundo mal-estar transferencial. Com o tempo percebi que sua transferência era tão pesada que me sentia atacado em qualquer ato de resistência de sua parte. Seu histórico era de acumular coisas, lixos e inclusive pessoas que tentavam trata-lo. Psiquiatras e outros profissionais de saúde desistiam do tratamento e viravam parte do seu acúmulo.

 Um muro deste acúmulo de material psíquico nos separava. Um cansaço e uma desesperança de chegar no psiquismo deste paciente me ensinaram muito sobre os meus limites e a minha própria loucura. O paciente de alguma forma erguia a tampa do meu próprio recalque e nos fusionávamos pela loucura. A transferência era enlouquecedora. Com o tempo percebi que a única forma de trata-lo era me tratar, para sustentar o mal-estar de nossa relação transferencial.

A transferência produz uma ligação e é desta ligação que também é amorosa que o trabalho analítico pode se dar. A psicanálise é uma cura pelo amor. O amor transferencial. A transferência não se dá somente no trabalho analítico, talvez a psicanálise seja o único saber a se preocupar com este fenômeno de modo fundamental em sua teoria. A transferência como vínculo está em todas as partes. Na educação, Freud discutiu como determinados deslocamentos de figuras maternas e paternas, eram transferidas para os professores. E isto parece cada vez mais decisivo para compreender o interesse ou desinteresse dos alunos pela aprendizagem.  

Quantas situações de projeções transferenciais temos que lidar no trabalho, na família, nas amizades e agora nas redes de comunicação social. Enfim, a transferência se realiza porque a realidade psíquica diz respeito a história de cada um de nós. Sob quais lentes se projeta no outro nosso próprio inconsciente? Winnicott chegou a dizer que a saúde psíquica estaria relacionada a nossa capacidade de dissolver estas projeções e poder vivenciar de modo mais criativo, leve e verdadeiro nossas relações interpessoais.

E quando pensamos a atualidade do momento histórico nos deparamos em nossos consultórios com os laços entre pessoas da mesma família ou de amizade que se romperam em nome da atualidade política. Experiências da conjuntura social intensificam as relações interpessoais. Como se o social potencializasse as projeções psíquicas. Aquele com pensamento contrário ao meu estimula os impulsos vindos do inconsciente. É como se a energia viesse de fora e de dentro e rendesse ao mesmo tempo que estimula o ego a superar suas fragilidades. Só resta ao ego assumir aqueles impulsos se quiser sobreviver. Ao assumir estes impulsos não precisa mais se defender, mas atacar. O ego vira um superego e então aparece revigorado, empoderado pelos impulsos inconscientes e externos.  

Há alguns meses discuti com um amigo de infância que produziu uma forte impressão em mim. Estávamos conversando sobre os rumos da pandemia no Brasil e no mundo. Ele é autônomo e descreveu toda sua raiva da situação atual. No que eu tentava ponderar fazendo um esforço para constituir algum vínculo nas possibilidades de refletir algo que nos atravessaríamos. Era impossível, sentia que era alvo de todas as projeções de agressividades.

Disse-me que queria bancar o letrado e que meus textos eram muito grandes. "Quero minha liberdade produtiva de trabalhar!”, dizia-me. Não era uma conversa, eram monólogos a dois. Este diálogo no fim me produziu um mal-estar que foi carregado de uma relação transferencial: era um amigo de infância nas quais memórias comuns puderam ser marcadas e atualizadas como traços simbólicos violentos que nos regrediram. Aliás nestes tempos de política à flor da pele, as amizades da infância tentam nos resgatar deste lugar que não encontra mais identidade numa imagem estática da infância. Como se tivéssemos perdidos e caberia a estes amigos ou mesmo familiares nos salvarem. Ironicamente é o máximo de amor próprio transferencial que podem nos dar.   

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"Mesmo a bandeira nacional, apesar de inúmeras explicações surgidas a posteriore (que falavam do verde de nossas matas e do amarelo das riquezas minerais), continuava a ostentar seus vínculos com a tradição imperial: o verde, cor heráldica da Casa Real Portuguesa de Bragança; o amarelo, cor da Casa Imperial Austríaca de Habsburgo. Além disso, o desenho republicano reaproveitava o losango da bandeira imperial - que representava uma homenagem de D. Pedro I a Napoleão - apenas, retirando-se o brasão monárquico, com as armas imperiais aplicadas, para introduzir o lema positivista de "ordem e progresso". (As Barbas do Imperador, Lilia Moritz Schwarcs).

Diante da intensidade histórica que estamos vivendo, confesso que duas expressões vêm à cabeça nestes tempos, acredito que resultado das minhas ambivalências serem cotidianamente estimuladas por estes restos diurnos da conjuntura enlouquecedora em que nos encontramos. Ainda não sonhei ter saído sem máscara na rua simbolizando minha nudez e desamparo. Mas a primeira expressão que penso ora ou outra é "cuidado para não se atolar no seu imaginário!"

E esta palavra "imaginário" no Brasil tem tantas sobredeterminações que só podem ser pensadas condensadas. Todas aquelas imagens sobrepostas que embaçam o significado e são compreendidas por associação... livre. Como sofremos todos de Brasil acentuado pelo momento da crise sanitária, econômica e política, nosso inconsciente sem a necessária censura do aparelho psíquico intensifica pobremente num duplo de condensação: do lugar de onde seus pés pisam socialmente e das identificações primárias. É como se estes restos diurnos não fossem quaisquer restos. São da ordem do transbordamento do trauma social e vão estimular os traços mnêmicos mais primitivos e materiais da nossa existência, a nossa própria condição de nudez socio-psíquica.

Por outro lado, algum aspecto das minhas ambivalências, quando provocadas fazem pensar que "ninguém é só Isso!" Este talvez seja o mais difícil dos exercícios transferências da atualidade. É quando aquele paciente repete cronologicamente sua condição de modo impenetrável. Não há furo! E você pacientemente pensa e espera: “ninguém é só Isso!”  

Esta transferência enlouquecedora em que estamos no Brasil nos coloca o desafio de nos tratar para cuidar do outro. Ao mesmo tempo que sou levado para o mais primitivo do meu imaginário (material e psíquico) sou tomado pela visão de que o outro não é só aquilo que se apresenta. É como se o outro se apresentasse em manifesto e não no manifesto. No manifesto há uma dimensão latente; em manifesto há uma ilusão de unidade e completude. Estas duas esferas devem se integrar para trazermos também uma dimensão onírica de desejo para as lutas.   


Marcelo Tomassini, 16 de junho de 2020. 

 


domingo, 3 de fevereiro de 2019

SEXO


Alberto era viciado em pornografia. Em sua análise dizia que não tinha uma vida sexualmente satisfatória com sua esposa. Preferia se masturbar vendo filmes pornôs. Certa vez seu analista disse-lhe: Alberto, você sabe que os atores pornôs usam Viagra para gravar, certo? Alberto ficou longos segundos em silêncio e mostrando surpresa comentou: sério? A sessão acabara ali.

O Deus da fertilidade na Grécia Antiga chamava-se Príapo. Em uma versão do mito, Príapo é filho de Dionísio e Afrodite. Hera enciumada por esta relação faz com que ele nascesse com uma deformidade, um enorme pênis que estava sempre em ereção.

Príapo foi considerado uma aberração e fora abandonado por Afrodite. Achado e criado por alguns pastores passou a ser cultuado como símbolo da virilidade e da fertilidade.

Guardava dos olhares invejosos as plantações e ameaçava com sodomia os malfeitores. Príapo estava sempre com o pênis ereto.

No discurso médico "priapismo" é uma doença na qual o pênis permanece muitas horas em ereção. A característica principal do priapismo é que a ereção deixa de ser motivada por estímulo ou excitação sexual.  

Há uma ética e uma moral para o sexo. A ética nos convida a criar uma hierarquia, enquanto a moral dita o que é certo ou errado no fazer dessa hierarquia.

Vivemos uma temporalidade confusa, em que os valores se ajustam com dificuldade numa realidade que molda em fragmentos. Falamos muito em igualdade e equanimidade na mesma proporção inversa em que camuflamos essas hierarquias sob o peso de um duplo sofrimento: sofrimento para aproximar os discursos do amor das práticas de isolamento e utilidade.

Não é à toa o pânico e a depressão tornarem-se duas faces do mal-estar da atualidade, manifestações de sintomas que revelam que o corpo (des)afetado resiste a jogar o jogo da plenitude, do estar sob os olhares invejosos da ereção de Príapo.  

Não é incomum no pânico as pessoas estarem aparentemente bem e ativas e de repente desmoronarem. Por outro lado, apesar do deprimido incomodar a plenitude social, sabe-se que a depressão também traz seus benefícios: o de apontar corporalmente que este jogo sem imaginação não dá mais para jogar. 

Enquanto se discute qual o melhor lugar para se transmitir a educação sexual, o acesso às redes virtuais oferece toda sorte de opções. Desde muito cedo o indivíduo encontra os modos que irão edificar sua construção sexual.

A internet oferece toda uma civilização para a sexualidade, desde posição até coletividade. Os papeis reservados para essa edificação, contudo, denunciam quase sempre a velha ética, a nova moral.

Na velha ética, a mulher está submetida aos desejos perversos, enquanto na nova moral deve ansiar pela isonomia. Mas é o corpo feminino a bandeira dessa forma poderosa de apreensão e distribuição do desejo.

O acesso a essa hiper sexualização do feminino estimula primeiro o prazer solitário de um modo que não dá pra medir. Mas também cumpre a uma pedagogia do prazer.

Respondendo ao tempo e ao contexto, o desempenho se tornou a questão fundamental do isolamento, pois o desempenho é o que diz de cada um de nós num mundo de afetos, de afetações.

O aumento da venda de Viagra entre jovens de 16 a 24 anos expressa bem essa busca pelo desempenho. O que importa é se exibir para o parceiro ou parceira. O resto é notícia.


Representação de Príapo, Deus da Fertilidade na Grécia Antiga. 

Os vazamentos dos vídeos íntimos na internet são resultado da indústria cultural da pornografia. Numa indústria que está crescentemente em crise para acelerar a queima do valor de uso das coisas, nenhuma imagem pode durar muito. E a busca por uma autenticidade da imagem se transforma pelo avesso na própria lógica padronizada.

Nos tempos de Freud, no início do século passado, a origem das neuroses estava na repressão sexual no contexto da era vitoriana. Os sintomas neuróticos seriam uma satisfação substitutiva da pulsão sexual recalcada.

 Parece que o alcance da repressão sexual atingiu sua mais complexa transformação, na qual o ato é estimulado pela massificação e não pela valorização da singularidade. O superego dos tempos atuais não é liberal, mas justamente o contrário, também é repressor num gozar compulsivo.   
 
Neste sentido nem mesmo é o prazer que se busca. Em todos os casos, a juventude quer aproximar sua persona virtual da relação concreta do encontro.

A pornografia desempenha um papel fundamental nesse processo. Justamente por ser aberta às inúmeras possibilidades de estímulo erótico, a pornografia livremente ofertada nas mídias promove uma ligação imediata entre o usuário e o padrão oferecido.

O sexo conquistado a partir desse uso contínuo vai moldando seu usuário num momento extraordinário cuja potência é sempre crescente. Uma enxurrada de imagens, propostas e convenções que molda a libido num formato padronizado.

Não precisa de criatividade essa forma de desejo mercantil. A oferta e a compra se equivalem. O que os olhos vêem e o tipo de gozo que se conquista são, em tempo, expressões de cansaços.

E essa exaustão, contudo, deve ainda fomentar o desempenho. Daí a necessidade de estimulantes químicos no processo.

Exilando a criatividade, o sexo é parte de um protocolo uniformizador. A glândula pineal é desnecessária. Não é a toa que o zumbi é parte integrante da cultura pop. Um indivíduo e um aparelho de emissões virtuais fechando o circuito vital.

As mulheres, algumas, buscam nos confrontos feministas uma saída a esse universo de objetivação. Esperam encontrar nas demandas públicas por justiça e igualdade o lugar de sua emancipação e reconhecimento.

Como não há lugar onde procurar saídas mais ousadas, nem alguém que nos aponte o caminho, o circuito permanece fechado, com uroborus, uma cobra que devora o próprio rabo. E as fronteiras do inferno que se expandem, sem nenhuma reserva.

O gozo é um estado único nessa história toda. Talvez por isso as estratégias sociais procurem sempre leucemizar sua potência. O gozo exige autoconhecimento para encontrar seus caminhos. Mas sempre muito precocemente se castram suas possibilidades.

Com diversas estratégias, a masturbação é inibida desde cedo. Nas meninas, pois meninas não devem se masturbar; nos meninos, pois meninos que se masturbam o fazem pela incapacidade de encontrar um ou uma parceira. E mesmo para aqueles que rompem essa zona de restrições, as ofertas estimulantes estão nas pornografias das redes virtuais.

Estimulados pela pornografia, vão abdicando da imaginação e vão degenerando as potencialidades de autoconhecimento que o gozo carece. Uma vez mais, o círculo vicioso anula a emancipação pelo orgasmo.

 O orgasmo libera uma energia que é primordial para nossa saúde e benefícios. É uma necessidade biológica e como tal deveria ser emanada todos os dias, de modo similar às nossas necessidades fisiológicas, alimentares, etc.

Ao amputar dessa função de nosso cotidiano, seja pela religião, pela família, pela escola ou pelo diversos constrangimentos sociais que nos privam, crescemos aptos a diversos sofrimentos e patologias. Mas também crescemos aptos à obediência, à aceitação dos protocolos, às armadilhas do egoísmo e do isolamento, pois a energia emanada pelo orgasmo expande de tal sorte nossas conexões que mesmo sem refletirmos sobre isso, nos unimos aos outros numa concha energética que se amplia sempre.

Mas, mais importante que isso, passamos a conhecer nosso corpo e as formas de prazer que ele manifesta.

Não podemos sequer inferir a quantidade de mulheres sexualmente ativas que nunca tiveram orgasmo numa sociedade tradicionalmente paternalista, em que o homem, desde muito cedo, nutre um medo mítico do gozo feminino.

De outro lado, os meninos que devem cumprir também seus protocolos para esse mundo paternalista, agregam em si o medo da falha e da falta, do fracasso diante da mulher. Essas velhas ordens estão brutalmente vitalizadas na intimidade do sexo ainda hoje.

De tal sorte que no mundo do desempenho, cada um deve expressar a fantasia da realização sexual da melhor forma que puder, ainda que seja sentado sobre uma farsa. Isolados em suas privações, edificam um mundo inteiro distante das possibilidades do amor.

O amor é parte de outra ilusão. Uma palavra gasta e vulgar que não expressa nada além dos insidiosos pronomes de sua materialização: meu amor, essa possessividade infernal da ética da dominação.

Incapazes de lidar com a felicidade do outro, pois que também não conseguem atingir a sua própria, cada um emite os sinais enviesados que o termo fechado inscrito na palavra amor sugere.

Servir ao outro seria o caminho a se perseguir, mas pra isso seria importante amar a si mesmo, sentir em seu próprio corpo a importância exorbitante do gozo como generosidade e acolhimento.

Isso aconteceria se a masturbação fosse vinculada integralmente sobre a imaginação e nunca sobre a pornografia. A imaginação é um lugar tão poderoso que Einstein dizia que esse é o verdadeiro sinal da inteligência.

Imaginar é erigir mundos fantásticos. E, no entanto, somos convencidos de que a imaginação é desnecessária ou perigosa. Soterrados por compromissos de informação e conhecimento, não encontramos lugar ou tempo para imaginar. E sem imaginação não podemos criar um lugar em que a existência possa ser solidária e colaborativa, as opções contra o mundo hierárquico que nos é oferecido todos os dias, o tempo inteiro.

A imaginação como estimulador da masturbação é um poderoso movimento para enfrentar os limites da moralidade.

As meninas que assim se movimentassem, desde cedo, conheceriam o próprio gozo e saberiam não estabelecer aliança com um mundo paternalista que desde muito cedo conforma seu lugar social. Aqui teríamos a tão sonhada igualdade de gênero, no gozo.

Não nos iludamos. O sexo é ponto sobre o qual se assenta todas as possibilidades de relações. As relações de poder são aí fundamentadas. Privatizar o sexo, enclausurar seus movimentos e suas expressividades gera um universo de privações. Castrar as possibilidades do prazer é garantir que as desigualdades prosseguirão.

Freud, com toda a sua ambivalência, dizia que “ninguém que tenha visto um bebê se afundar de volta saciado do peito e adormecer com as bochechas coradas e um sorriso feliz pode escapar da reflexão que esse quadro persiste como um protótipo da expressão da satisfação sexual mais tarde na vida.”.


Eduardo Antonio Bonzato e Marcelo Tomassini  



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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O inevitável e o impossível




“Todas as revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis.”

Trotsky




A primeira vez que atendi num hospital psiquiátrico veio um frio na barriga. Ao pegar a chave na recepção a atendente disse: “boa sorte!” Duas portas de ferro e dois andares de escada separavam a ala que atenderia. Ao abrir a segunda porta dou de cara com uma fila: era para tomar o remédio.  Logo vejo o paciente, o cumprimento na fila e digo que vou dar uma caminhada pelo local. 

 Um espaço com corredores cheio de quartos, com uma pequena área verde onde se localiza uma quadra. Nos primeiros passos sou parado por um rapaz que pergunta quem sou. Digo meu nome e me apresento como psicanalista. Diz que já fez análise e mostra umas marcas no braço: “sabe como é né, tentativa de suicídio”. Sigo adiante outro rapaz me aborda (é uma ala masculina), perguntando como poderia fazer terapia. Parecia bem dopado de remédios. Explico que a instituição que encaminhava e era preciso falar com o responsável do setor de psicologia.

Consigo andar alguns passos e vou à área verde. Lá um senhor puxa assunto comigo e pergunta se havia chego naquela hora. Achava que eu era um paciente do hospital. De fato, tirando os médicos com avental branco e os enfermeiros com uniforme verde, eu estava vestido como eles, calça jeans e camiseta. Isto me dava um lugar ambíguo, diferenciado para os profissionais que ali estavam e indiferenciado para os pacientes.

Quando sai dali um enfermeiro perguntou: “tomou seu remédio?” Lembro-me só de colocar a mão no bolso para saber se ainda ali se encontrava a chave que a atendente havia me dado. Uma fantasia de ficar preso naquele lugar passou de relance na minha cabeça.  Na verdade com o tempo percebi o quanto tratei minhas próprias loucuras ali.  

Sempre pensei que para me tornar um psicanalista deveria fazer uma experiência num hospital psiquiátrico. Era preciso chegar a radicalidade da clínica e da condição humana, e a radicalidade só poderia ser a crise que levaria a uma internação. Em especial queria atender pacientes psicóticos, esquizofrênicos. A própria ideia de hospital psiquiátrico remetia a uma tradição na história da modernidade que representa uma linha tênue entre a barbárie e a civilização.

Recentemente o livro o “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex relata as internações forçadas num hospital psiquiátrico em Barbacena, Minas Gerais, nas décadas de 60 e 70. Pessoas eram internadas a força sem diagnóstico, sem cuidado, muitas vezes mulheres com condutas fora do “padrão aceito”, homossexuais, negros.  O livro é uma denúncia que se junta a várias outras pelo mundo. Uma série de movimentos sociais surgiram na década de 70 e 80 e marcaram o que ficou conhecido como luta antimanicomial. A defesa de uma reforma psiquiátrica que atendesse e respeitasse a dignidade e o sofrimento humano.

No hospital fui recebendo pacientes, com neuroses graves, dependentes químicos, esquizofrênicos e fui me habituando aquele lugar. Os dias de atendimento foram passando e as rotinas sendo criadas. Aquele espaço estranho e inquietante foi se humanizando à medida que meu imaginário e minha idealização diminuía. Aquelas pessoas internadas tem histórias. E meu trabalho era escutá-las. Com o tempo descobri que a radicalidade da clínica tem a ver mais comigo do que com o outro. Da nossa capacidade em lidar com a angústia do trabalho de escutar. 

               Mais uma versão do clássico “Drácula” (1958), de Bram Stoker.

Quando recebi o primeiro paciente com o diagnóstico de esquizofrenia entendi que ali estava uma forma subjetiva muito singular. E escutar aquela forma de ser no mundo colocava em questão a minha própria existência, minha impotência. Às vezes o que se pode fazer é estar lá, ao lado, em silêncio. E aprendi que isso não é pouca coisa. 

É o que nos remete a clínica a todo momento, aos nossos limites. O trabalho analítico e de atendimento é também elaborar o lugar do nosso narcisismo, de não saber até onde chegam nossas palavras.

    A modernidade produziu uma fantasia de que é possível controlar a natureza, o lixo, a produção, o lazer, o trabalho, o consumo, a educação, diagnósticos, notas, avaliações etc... Mas no meio de tudo isso tem o humano e sua falta, seus desejos, seu desamparo e suas pulsões, aquilo que nos marca e nos movimenta, que provoca encontros, desencontros e finitudes, pequenas mortes, traumas, compulsões.

Trotsky, o revolucionário russo, evidenciava que por trás deste controle do capitalismo existe uma força contraditória que movimenta as classes, os indivíduos, a política, o social, a cultura e produz crises e lutas sociais. Esta força é o resultado da disputa entre o capital e o trabalho.  Como se no capitalismo também existisse algo da ordem do inconsciente que não está sob o controle do conhecimento, da consciência.    

As crises na história, em especial a de 2008, demonstraram que “as agências de risco” (que nome!) produziram uma ilusão de uma estabilidade e segurança econômica quando de repente todo o sistema desmoronou. A maior crise do capitalismo! O impossível e o inevitável tão distantes e tão próximos.

            Deleuze trata a esquizofrenia como uma forma subjetiva revolucionária visto que não se enquadra nesta obsessiva ordem capitalista, nem na vida edípica somente. O delírio é social, diz Deleuze. Já Freud dizia que analisar, educar e governar representam as profissões impossíveis. O impossível é justamente não poder controlar o desejo do outro. Na educação posso dizer que há algo que escapa, por mais métodos pedagógicos que nos especializemos.

O corpo e a palavra são regidos pelo inconsciente, marca singular de cada individuo. A angústia docente parece ser o de não saber ao certo aonde chegam suas palavras para os alunos. Saber que seu saber não é completo ou não completa o outro adoece muitos professores, adoece a escola. Talvez esta experiência no hospital tenha feito refletir sobre  a escola e a tese freudo-trotskista do impossível e inevitável, pois percebi através do meu próprio desamparo, que só se aprende no hospital e na escola quando nos permitimos o lugar do não saber. 

Certa vez o paciente que atendia com diagnóstico de esquizofrenia dizia que queria estudar a esquizofrenia. Achava que podia ajudar na busca da cura. Dizia-me que em todas as civilizações na história haviam delírios como dos vampiros, do Drácula. E que por um tempo havia comido alho e se sentira melhor. Este senhor até então visto como doente se coloca na história das civilizações e porque não produz uma simbolização de sua própria história. Termina nossa conversa dizendo que a cura é conviver com a esquizofrenia. Mas esta não é a cura e o desafio para todos nós: conviver e realizar a (im)potência daquilo que somos?   


                
Marcelo Tomassini, 16 de novembro de 2018.